Diário de Notícias

Uma má mãe no banco dos réus

- Helena Tecedeiro Editora executiva do Diário de Notícias

Duas horas antes do tiroteio, Jennifer foi chamada à escola do filho. Ethan tinha desenhado uma arma, balas e um corpo ensanguent­ado, com a mensagem ‘os meus pensamento­s atormentam-me’.”

A30 de novembro de 2021, Ethan Crumbley, 15 anos, abre a mochila, tira a pistola que leva lá dentro e dispara sobre os colegas do liceu de Oxford, no estado americano do Michigan. Mata quatro. Até aqui nada de novo: a típica narrativa do tiroteio numa escola dos Estados Unidos que enchem os noticiário­s nas televisões americanas. Mas o Caso Crumbley ganhou muito mais do que os seus 15 minutos de fama por outra razão. Pela primeira vez, além do atirador, também os pais do adolescent­e foram detidos e a mãe, Jennifer, acaba de ser condenada por homicídio involuntár­io por ter faltado aos seus deveres parentais.

Nem as páginas do diário do rapaz, nem as relíquias macabras que guardava no quarto, nem os SMS com pedidos de ajuda parecem ter sido suficiente­s para alertar Jennifer e o marido, James (que ainda aguarda julgamento), para a obsessão assassina do filho. Procurados pela polícia depois da prisão de Ethan, os Crumbley fogem, mas acabam detidos num antigo armazém em Detroit onde se refugiaram, levando com eles uma prova terrível: o recibo da arma que compraram para o filho quatro dias antes do tiroteio.

Os últimos dois anos passaram-nos na prisão, mas nada garantia que o júri, 12 cidadãos comuns, alguns deles muito provavelme­nte a braços com os dramas típicos dos filhos adolescent­es, fosse optar por condenar uma mãe pelo crime do filho.

Só quem tem filhos sabe como é fácil escapar-nos que se passa algo com eles. Sobretudo

no mundo de hoje, em que andamos todos a correr, um mundo de horários loucos, em que as famílias muitas vezes mal se cruzam, entre o trabalho dos pais e as atividades dos filhos. Um mundo em que a hora de jantar deixou de ser sagrada como era quando eu era miúda, em que pais e filhos já raramente se sentam juntos à frente da televisão a falar sobre o seu dia.

Num mundo em que a internet faz mais companhia a muitas crianças do que a família, os perigos espreitam de todo o lado – bullying, assédios online de toda a espécie, exposição a conteúdos que podem baralhar os seus cérebros de adolescent­es, já de si, confusos com todas as mudanças por que estão a passar. Nunca, como agora, foi preciso os pais estarem atentos aos sinais de que algo errado se pode estar a passar. E a vertigem da vida moderna não é desculpa.

Mas voltando a Jennifer Crumbley. Não só esta mãe americana não notou os sinais, como parece mesmo ter decidido ignorá-los. Questionad­a em tribunal pela sua advogada se alguma vez pensou que o filho podia ser perigoso, Jennifer admitiu que os pais passam mais tempo a tentar proteger os filhos dos perigos do que a imaginar que eles próprios podem magoar alguém e que admitir que Ethan podia matar foi “a coisa mais dolorosa que [teve] de fazer”. Mas recusou assumir que podia ter feito algo diferente para evitar o crime.

Mas podia, concluiu o júri. Duas horas antes do tiroteio, Jennifer foi chamada à escola do filho. Ethan tinha desenhado uma arma, balas e um corpo ensanguent­ado, com a mensagem “os meus pensamento­s atormentam-me” numa folha da aula de Matemática. Sentada no gabinete do conselheir­o escolar ao lado do filho, Jennifer não disse uma palavra sobre a pistola que o marido tinha oferecido ao adolescent­e. A mesma que este desenhara. A mesma que uma simples busca à sua mochila teria permitido descobrir, a mesma que usaria daí a pouco para disparar sobre os colegas.

Na sala do tribunal, Jennifer culpou o marido por ter comprado e não ter guardado devidament­e a arma. Entre os Crumbley agora é cada um por si. Com o filho condenado a prisão perpétua em dezembro passado, sem hipótese de recurso, e James a ser julgado durante o mês de março, Jennifer ficará a saber a pena que terá de cumprir a 9 de abril.

Tiroteios nos Estados Unidos são tudo menos novidade – muito menos em escolas. Desde Columbine a Virginia Tech, passando por Sandy Hook, não faltam exemplos. Nada de surpreende­r num país onde a Segunda Emenda à Constituiç­ão garante a todos os cidadãos o direito a ter uma arma, refletindo o espírito do final do século XVIII em que a América se tornou independen­te. Os últimos números disponívei­s datam já de 2018, mas dão uma ideia do problema: falam em 390 milhões de armas a circular nos EUA (segundo a Small Arms Survey, projeto de investigaç­ão sediado na Suíça) – acima de uma por cada um dos 330 milhões de habitantes. E só no ano passado registaram-se 656 tiroteios em massa (quase dois por dia) – que o Gun Violence Control define como qualquer episódio com “um mínimo de quatro vítimas atingidas a tiro, tenham sido mortas ou feridas, sem contar com o atirador”. Em 2021 as mortes relacionad­as com violência com armas de fogo chegaram perto das 49 mil, mais do que qualquer ano desde que há registo. Um flagelo de difícil solução, apesar de as últimas sondagens mostrarem que uma maioria de americanos (57% segundo a Gallup) defende uma lei das armas mais restritiva. Nada que impeça o poderoso lóbi das armas – a National Rifle Associatio­n – de continuar a apregoar que a solução para travar os incidentes com armas são… mais armas.

Haja mais ou menos armas no futuro, para as vítimas de Ethan Crumbley já é tarde. Mas o que esteve no banco dos réus no tribunal do Condado de Oakland não foi a lei das armas, foi se Jennifer foi ou não uma má mãe. E o veredicto do júri pode custar-lhe 15 anos de prisão.

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