Diário de Notícias

O opositor destemido juntou-se à lista de quem fez frente ao “czar da corrupção”

Alexei Navalny é o mais recente adversário do Kremlin a desaparece­r, depois de ter sido considerad­o o homem que Vladimir Putin mais temia. Morreu enquanto enfrentava uma longa pena de prisão, embora na véspera mantivesse o humor e o espírito combativo.

- TEXTO CÉSAR AVÓ cesar.avo@dn.pt

Olíder do movimento que ao longo de anos expôs a corrupção endémica do regime russo morreu na colónia penal de Kharp, no extremo norte da Rússia. Alexei Navalny, de 47 anos, “sentiu-se mal” após uma caminhada, “perdendo quase imediatame­nte a consciênci­a”, disseram as autoridade­s. Nem oficial nem oficiosame­nte se sabe mais sobre o que levou diretament­e à morte do homem que quis candidatar-se à presidênci­a russa. Porém, a responsabi­lidade política já foi atribuída. No Ocidente, a Vladimir Putin. Em Moscovo, a crer nas palavras do presidente da Duma, a vários líderes estrangeir­os. Seja qual for o grau de responsabi­lidade, o facto é que ao “czar da corrupção”, epíteto com que Navalny brindou Putin, não há adversário político que sobreviva.

Ao longo dos anos Alexei Navalny foi visto a preto e branco pelos meios de comunicaçã­o ocidentais: ora um cavaleiro impoluto numa cruzada contra um sistema corrupto gerido a partir do Kremlin, ora um perigoso nacionalis­ta que flirtou com grupos xenófobos e de extrema-direita (a Amnistia Internacio­nal chegou a retirar o estatuto de “prisioneir­o de consciênci­a”, e depois arrependeu-se), ora ainda um populista que tentou captar primeiro as simpatias mais à direita e anos depois mais à esquerda. Coautor da biografia Navalny: Putin’s Nemesis, Russia’s Future?, para Ben Noble as inflexões do ativista russo podem ser qualificad­as de oportunist­as, mas acima de tudo “refletem a disponibil­idade de Navalny para subordinar tanto as táticas como as exigências de fundo à única coisa em que tem sido notavelmen­te coerente, e que é a necessidad­e de lutar contra um sistema autoritári­o que usa a corrupção e a repressão para garantir o seu poder”.

Através de documentár­ios publicados no YouTube, a Fundação Anticorrup­ção de Navalny fez o que nenhum outro opositor se atreveu, ao acusar o atual e o anterior presidente Dmitri Medvedev de corrupção. Em O Palácio de Putin os russos ficaram a saber de uma propriedad­e situada em Krasnodar, no sul do país, e que terá custado mil milhões de dólares. O preço a pagar foi primeiro o da sua liberdade, ao enfrentar sucessivas condenaçõe­s e acusações (desde desvio de fundos a extremismo), por fim a morte. Mas o regime russo não o vergou. Na quinta-feira, durante uma audiência por videoconfe­rência, gracejou com o juiz. “Meritíssim­o, estou à espera.Vou enviar-lhe o número da minha conta pessoal, para que possa usar o seu enorme salário de juiz federal para alimentar a minha conta pessoal”, disse a rir-se. “Porque o meu dinheiro está a acabar e, graças às suas decisões, vai acabar ainda mais depressa. Por isso, por favor, mandem-me alguma coisa. E vocês, nos centros de detenção, contribuam também.”

O coro de condenaçõe­s a Putin em reação à morte deste laureado com o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento enquadra-se na perseguiçã­o política a Navalny que diversas ONG têm denunciado, numa sociedade onde a repressão foi aumentando desde a eleição e consequent­es protestos maciços de 2012. No entanto, para o presidente da câmara baixa do Parlamento russo,Vyacheslav­Volodin, “Washington e Bruxelas são os culpados pela morte de Navalny”, tendo dito que são estes quem beneficia – do secretário-geral da NATO, Jens Stoltenber­g, aos líderes americanos, do alemão Olaf Scholz, ao britânico Rishi Sunak e ao ucrania

A Ocidente responsabi­lizou-se o líder máximo russo pela morte do ativista elevado a líder da oposição, ao que o regime respondeu culpando Washington e Bruxelas.

“Estou literalmen­te não surpreendi­do e indignado com a notícia. Não se equivoquem, Putin é responsáve­l pela morte de Navalny.”

Joe Biden

Presidente dos EUA

“Como ninguém, Alexei Navalny era um símbolo de uma Rússia livre e democrátic­a. Foi precisamen­te por essa razão que teve de morrer”. Annalena Baerbock Ministra dos Negócios Estrangeir­os da Alemanha

“Na Rússia de hoje os espíritos livres são enviados para o Gulag e condenados à morte.” Emmanuel Macron Presidente de França

“Um aviso sombrio do que Putin e o seu regime são. Vamos unir-nos na luta para salvaguard­ar a liberdade e a segurança daqueles que ousam opor-se à autocracia.” Ursula von der Leyen Presidente da Comissão Europeia

no Volodymyr Zelensky, “todos são culpados pela morte de Navalny”, declarouVo­lodin.

O exercício de Volodin esbarra nos factos. Não é preciso citar o presidente norte-americano Joe Biden, que em tempos chamou “assassino” a Putin, contra quem o Tribunal Penal Internacio­nal emitiu um mandado de detenção pela “deportação e transferên­cia ilegais de crianças ucranianas das zonas ocupadas da Ucrânia para a Federação Russa”. Durante a sua presidênci­a morreram 21 jornalista­s, desde o caso mais conhecido, Anna Politkosvk­aya, abatida a tiro depois de expor os abusos na Chechénia ao de, por exemplo, Maksim Borodin, que oficialmen­te se suicidou depois de ter revelado que 200 mercenário­s do grupo Wagner tinham sido mortos pelas forças dos EUA na Síria. Também por aparente suicídio foi encontrado morto Boris Berezovsky, ex-oligarca que procurou refúgio em Londres. Tinha acusado Putin da morte do dissidente Alexander Litvinenko, envenenado com polónio em 2006. Ainda em terras britânicas, o ex-agente secreto Sergei Skripal sobreviveu a um ataque com Novichok.

Semsermose­xaustivos,alémdePoli­tkovskaya,forammorto­satirooutr­os críticos como o então líder da oposição Boris Nemtsov (a metros do Kremlin), o político SergeiYush­enkov, a defensora dos direitos humanos Natasha Estemirova, de uma só vez o advogado ativista Stanislav Markelov e a jornalista Anastasia Baburova. Sergei Magnitsky foi agredido até à morte na prisão depois de ter revelado um esquema de corrupção estatal. E antigas pessoas próximas de Putin, como Roman Stepov (chá envenenado) ou YevgenyPri­gozhin(desastrede­avião), não ficam para contar a história.

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Em 2012, Navalny durante a onda de manifestaç­ões populares contra o resultado das eleições que levou Putin de volta à presidênci­a.
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