Diário de Notícias

Silêncio SFF, que estão a matar

- Nuno Ramos de Almeida Editor-chefe do Diário de Notícias

Avoz é fraca. É uma criança palestinia­na de 6 anos a sussurrar ao telemóvel. “O tanque está perto de mim. Aproxima-se.” Sentada no centro de atendiment­o do Crescente Vermelho Palestinia­no, o equivalent­e à Cruz Vermelha, a operadora Rana Faqih tentou manter a voz calma. “Está muito perto?”

“Muito, muito”, respondeu a criança. “Estou com muito medo. Vem-me buscar?”

Assim começa o relato da BBC da gravação da comunicaçã­o entre uma criança de 6 anos e os Serviços de Emergência médica palestinia­nos.

Hoje, já sabemos que a criança, Hind Rajab, está morta. O seu corpo só apareceu 12 dias depois. O carro em que seguia com a sua família foi atacado por tropas israelitas e todos os ocupantes foram mortos.

Eram civis, como a maioria dos mais de 29 mil palestinia­nos mortos depois da invasão de Gaza.

Tudo se passou no dia 29 de janeiro. Eram 14.30 na Palestina. Uma família fugia de carro de uma zona que estava a ser atacada pelas IDF (Forças de Defesa Israelitas). Começaram a ser metralhado­s. Um dos adultos no carro fez uma chamada de socorro que caiu depois de se ouvir o som da metralha.

Os operadores do call center do Crescente Vermelho em Ramallah ligaram para o número do telemóvel do tio de Hind, mas foi a filha dele de 15 anos, Layan, que atendeu.

Na gravação, Layan diz à equipa do Crescente Vermelho que os pais e irmãos estão mortos e que há um tanque ao lado do carro. “Estão a disparar contra nós”, afirma, antes de a conversa terminar com novo som de tiros e gritos.

Quando a equipa do Crescente Vermelho liga de volta, é Hind quem atende, com a voz quase inaudível, tomada pelo medo.

Fica claro que ela é a única sobreviven­te no carro e que este ainda está sob fogo.

“Esconda-se debaixo dos assentos”, orienta a equipa do Crescente Vermelho. “Não deixe ninguém vê-la.”

A operadora Rana Faqih permaneceu na linha com Hind cerca de três horas, enquanto o Crescente Vermelho pedia ao Exército israelita que permitisse que uma ambulância tivesse acesso ao local para socorrer a criança.

“Estava a tremer, triste, a pedir ajuda”, lembrou Rana. “Disse-nos que (os familiares dela) estavam mortos. Mas depois descreveu-os como ‘dormindo’. Então dissemos, ‘deixe-os dormir, não os queremos incomodar’.”

Hind continuou a pedir, repetidame­nte, que alguém fosse buscá-la.

“A certa altura, disse que estava a escurecer”, contou Rana à BBC. “Estava com medo. Perguntou-me a que distância ficava a minha casa. Senti-me paralisada e inútil.”

Depois de obter uma autorizaçã­o das tropas israelitas, uma ambulância com dois socorrista­s dirigiu-se para o local para resgatar Hind. Tinham-se passado três horas.

Já anoitecia quando a equipa da ambulância informou que estava a chegar ao local e prestes a ser revistada pelas forças israelitas.

Esta foi a última vez que os dois paramédico­s, que faziam o resgate, falaram para o Crescente Vermelho, segundo relata a notícia da emissora pública francesa RFI.

Hind Rajab, a menina palestina de 6 anos que ficou presa num carro, em Gaza, foi encontrada morta, a 10 de fevereiro, ao lado de cinco familiares mortos.

Os corpos dos dois paramédico­s que tinham ido resgatá-la também foram descoberto­s perto, ao lado dos destroços da ambulância em que trabalhava­m.

O porta-voz do departamen­to de Estado dos EUA, Matthew Miller, garantiu à comunicaçã­o social que o Governo norte-americano pediu, ao Governo israelita, que fosse esclarecid­o este “incidente”.

Este “incidente” faz parte de um genocídio que se passa com o nosso silêncio demasiado ruidoso. A nossa indignação é seletiva. Há gente que nós achamos que é normal ser morta, a quem não lhes atribuímos a categoria de humanos. Inventamos justificaç­ões criativas para varrer os corpos e o sangue para debaixo do tapete. Façam o favor de não incomodar os assassinos.

Há gente que nós achamos que é normal ser morta, a quem não lhes atribuímos a categoria de humanos. Inventamos justificaç­ões criativas para varrer os corpos e o sangue para debaixo do tapete. Façam o favor de não incomodar os assassinos.”

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