Diário de Notícias

Argentina está cada vez mais doente, mas Milei ainda garante ter a cura

Argentinos sentem, no estômago, o radicalism­o económico do novo presidente, que o Congresso tenta suster. Ele, entretanto, avisou que ia piorar antes de melhorar. “Até quando?”, perguntam analistas.

- TEXTO JOÃO ALMEIDA MOREIRA

Quem achar caro o preço do bife de chorizo, o tipo de carne de vaca mais consumido nos restaurant­es argentinos, cujo preço subiu 40% desde a chegada de Javier Milei ao poder, pode sempre optar por alimentos considerad­os menos nobres, como o ovo, a carne moída, o peito de frango ou o arroz – mas estes também aumentaram, respetivam­ente 44%, 40%, 29% e 27%, segundo o jornal local El Economista. No final da refeição, atenção ao inevitável café, que subiu incríveis 254%, e à necessária higiene dentária, uma vez que a pasta de dentes custa agora 143% a mais.

“Não se pode comer!”, queixa-se Demétrio Iramain, jornalista argentino de Buenos Aires que não consegue ir a um restaurant­e “desde novembro”, numa conversa por telefone com o DN. Nem comer nem, digamos, o oposto: o papel higiénico teve alta de 410%; as fraldas para bebé dobraram de preço.

Milei, 53 anos, ultraliber­al eleito presidente da Argentina a 19 de novembro de 2023, há exatos três meses, ao bater Sergio Massa, candidato apoiado pelo ex-presidente Alberto Fernández e pela ex-vice Cristina Kirchner, advertiu na tomada de posse: “No curto prazo a situação vai piorar, mas depois veremos os frutos dos nossos esforços.”

E disse ainda, em entrevista desta semana à televisão La Nación

Mas, que “a atividade económica na Argentina cairia muito mais, não fossem as primeiras medidas” adotadas pelo seu Governo. Para Milei, “os números, isoladamen­te, podem ser horríveis, mas devemos ter em conta onde estávamos e qual era a tendência”.

Carlos De Angelis, cientista político da Universida­d de Buenos Aires, diz ao DN que o “discurso da herança maldita claro que vai pegando para já”. Mas pergunta: “até quando?”

“Milei tenta vender a inflação enorme de 25% em dezembro, outro tanto em janeiro e algo parecido em fevereiro, como culpa do Governo anterior, só que esses números, a manterem-se, como é previsível, trarão custos políticos ao Governo nos próximos meses.”

O PIB argentino parou de crescer em 2011, ainda Milei era um desconheci­do economista. E o país enfrentou, desde então, cinco grandes recessões, além da causada pela pandemia, cada uma mais forte do que a anterior, sob os Governos de Cristina Kirchner, presidente de 2011 a 2015, de Maurício Macri, de 2015 a 2019, e de Alberto Fernández, de 2019 até ao ano passado, a primeira e o último peronistas, isto é, de centro-esquerda, e o do meio, de centro-direita.

Com base neste cenário amplo de 13 anos, economista­s locais e internacio­nais têm natural cautela nas análises a meros três meses de Milei. Entretanto, como sustenta o analista de estratégia de uma gestora financeira argentina, Jeronimo Montalvo, em artigo publicado no site Perspectiv­as, “com um plano económico bem-sucedido e sem sobressalt­os, a economia até pode começar a crescer no segundo semestre, porém, com consequênc­ias inevitávei­s, até lá, no desemprego e na pobreza, que poderia chegar a números bem acima dos 50% ao fim do ano, o que traria pesados custos políticos”.

Porque Milei é um economista num cargo, sobretudo, político. E a política não lhe dá tréguas. “A Lei Omnibus, como se chamou à lei originalme­nte com mais de 600 artigos e mudanças profundas no funcioname­nto do Estado, não teve êxito, porque o Congresso, na votação artigo por artigo, chumbou boa parte, sobretudo por ação dos parlamenta­res vinculados aos governador­es de estados, como Santa Fé, Córdoba e outros, que se sentiram prejudicad­os por ela”, detalha De Angelis.

“Resultado: reduziram-na a 300 artigos, numa derrota para Milei”.

“No fundo, temos um Milei a adaptar-se à realidade, domesticad­o, por conta da falta de base no Congresso”, acrescenta Vinícius Vieira, professor de Relações Internacio­nais e Economia da Fundação Getúlio Vargas. “E é positivo que um político com claros pendores autoritári­os se adapte ao sistema – ‘a la casta’, como ele diz – e não queira mais privatizar tudo, como, por exemplo, a petroleira local”.

“É um sinal de que a Argentina, apesar do colapso económico sempre no horizonte, está distante de um colapso democrátic­o, o que só não ficará descartado se se verificar uma vitória de Donald Trump nas eleições dos EUA do final do ano – um desfecho desses encorajari­a Milei a dobrar apostas autoritári­as”, completa, ao DN.

Lembra De Angelis, entretanto, que “essa debilidade no Congresso, gera a discussão no La Libertad Avanza [o seu campo político parlamenta­r] sobre se Macri [da coligação de direita moderada Juntos Por El Cambio] se deve juntar ou não ao Governo e, se sim, se Macri ganharia ministério­s, tendo em conta que um dos ministros originais até já

caiu [Guillermo Ferraro]”.

“Como no Governo”, prossegue o politólogo, “há quem defenda coisas opostas, tudo isso gera frustração em Milei e daí nasce outro ponto negativo da sua gestão, como os insultos – ‘todos os deputados são corruptos’, por exemplo – que lhe podem ser mediaticam­ente convenient­es, por agora, mas que só debilitarã­o o seu Governo, a prazo”.

De Angelis, contudo, encontra pontos positivos na gestão do novo presidente argentino até agora: “O ponto mais alto de Milei desde a eleição talvez seja ter mostrado um Governo que tem vontade de governar e que tenta manter a iniciativa política, em contraste com a segunda metade do Governo Macri e o Governo de Alberto, onde se notou falta dessa iniciativa política.”

“Se olharmos para a primeira volta, na qual Massa chegou a 37%, o voto genuíno em Milei é de 30%, porque os 55,6% obtidos na segunda são aquilo a que chamamos aqui de ‘maioria fictícia’, essas maiorias obtidas nas segundas voltas com voto útil, mas tem, entretanto, uma ‘maioria intensa’, graças àquela combativid­ade demonstrad­a.”

E há a visita ao Vaticano, como recorda Vinícius Vieira, para encontrar Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, conterrâne­o de Milei. “A visita simbólica ao Papa, que ele havia ofendido, mas ao qual se rendeu, mesmo sendo Bergoglio um assistenci­alista e, por isso, mais perto do campo peronista, foi importante num país com vasta maioria católica.” “O encontro com o Papa também serviu, por outro lado, para distrair dos problemas políticos internos e terrenos”, conclui De Angelis, da Universida­d de Buenos Aires.

No mundo terreno, além do caso de Demétrio, que come em casa e só o que der para comprar, Ana Kusmuk, produtora musical, diz ao DN que “o presidente ataca a cultura”, por um lado, e “os mais necessitad­os, por outro, porque além da comida, o transporte público sobe, sobe, sobe”.

O jornal norte-americano New York Times, em reportagem na capital argentina, acrescenta o caso de um “proprietár­io de um bar de

vinhos moderno em Buenos Aires que viu o preço da carne subir 73%, enquanto a curgete que ele coloca nas saladas aumentou 140%”. “Na Argentina, um país sinónimo de inflação galopante, as pessoas estão habituadas a pagar mais por praticamen­te tudo. Mas sob o novo presidente do país, a vida está a tornar-se rapidament­e ainda mais dolorosa”, conclui a reportagem.

A atriz brasileira Gabi Casé, autora de Viver em Buenos Aires, um canal do YouTube, contou ao jornal Folha de S. Paulo que o filho mais velho, “que é educador físico e ganha em pesos”, não conseguiu chegar ao fim do mês passado, “e não por ter gastado além do que costuma”. “Simplesmen­te, o salário em pesos não consegue acompanhar os preços”.

Outros brasileiro­s na capital argentina dizem lembrar-se dos tempos de Collor de Mello, em 1989, quando, de hora em hora, os preços subiam nos supermerca­dos.

Ana Kusmuk conclui que “o pior de tudo já não é não ter dinheiro, é não ter esperança nenhuma neste loco”. “Resta unirmo-nos e resistir.”

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 ?? ?? “Os números, isoladamen­te, podem ser horríveis mas devemos ter em conta onde estávamos e qual era a tendência”, afirmou Milei esta semana.
“Os números, isoladamen­te, podem ser horríveis mas devemos ter em conta onde estávamos e qual era a tendência”, afirmou Milei esta semana.

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