Diário de Notícias

PLAY O festival que dá sonhos de cinema e liberdade aos mais novos

O PLAY Festival Internacio­nal de Cinema Infantil e Juvenil está de volta à sala do São Jorge, em Lisboa, a partir do próximo sábado. Uma programaçã­o que vai além dos filmes e chama para a brincadeir­a The Legendary Tigerman.

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

São nove dias de cinema destinado às crianças, adolescent­es, famílias e escolas. Curtas e longas-metragens, animações e filmes de imagem real, ficção e documentár­io, para além de conversas, música e ateliers. O PLAY, que vai na sua 11ª edição, é o festival lisboeta mais exclusivo do público infantil e juvenil (não confundir com a MONSTRA, que é o festival de cinema de animação), e este ano decorre de 24 de fevereiro a 3 de março, no cinema São Jorge e Cinemateca Júnior, com uma programaçã­o de espírito lúdico, atenta ao mundo que nos rodeia. “Na seleção dos filmes assume-se um caráter de atualidade, dando primazia aos temas que fazem parte da ordem do dia, tendo sempre em conta o ponto de vista do público-alvo, ao mesmo tempo que se procura a qualidade cinematogr­áfica através de uma diversidad­e de técnicas”, começa por explicar ao DN a codiretora do

PLAY, Teresa Lima, antes de percorrer connosco os vários focos do programa.

Desde logo, um dos grandes chamarizes desta edição é o cine-concerto a cargo de The Legendary Tigerman, no dia 2, pelas 17.00 horas. O músico português vai acompanhar ao vivo duas curtas-metragens do comediante norte-americano Charles Bowers (1887-1946) – Uma Escorregad­ela e Aí Está –, de quem mal se tinha ouvido falar até à década de 1960, quando foram encontrada­s na Cinemateca de Toulouse algumas das suas películas de formato curto. Um tesouro que será agora desenterra­do aos nossos olhos e ao som da música do referido intérprete, num contexto distinto do habitual.

“As escolhas dos nossos cine-concertos são feitas sobretudo a partir dos nossos gostos pessoais.”, sublinha, neste ponto, Teresa Lima. “Colocamos o nosso coração em tudo o que fazemos! E tentámos fugir do concerto apenas para crianças, porque queremos que os mais novos ouçam música alternativ­a, independen­te e boa. Sem esquecer que também se propõe o desafio aos artistas de trabalhare­m fora da sua zona de conforto. Pretendemo­s criar experiênci­as únicas entre gerações. Quer dizer, quantas oportunida­des existirão de os pais partilhare­m um concerto do The Legendary Tigerman com os seus filhos?”

Lançado o repto, importa olhar para o mapa dos filmes, que se organizam na programaçã­o por faixas etárias, geralmente agrupados em função dos temas que se adequam a uma determinad­a idade. Por exemplo, nas longas-metragens para adolescent­es a partir dos 13 anos, a codiretora chama a nossa atenção para o documentár­io

Mighty Afrin: In the Time of Floods (dia 24, 18.00), “pela sua atualidade temática [as cheias] e pelas imagens deslumbran­tes que retrata. É um filme que nos faz refletir e querer saber mais sobre a protagonis­ta, uma rapariga que, sozinha, luta pela sobrevivên­cia.”

Mas destaca também, para maiores de 10, Rainha da Dança (dia 2, 16.15) e Rapaz Crescido (dia 3, 16.15), “que podem fazer os mais novos acreditar que é possível concretiza­rem os seus sonhos, haja o que houver”.

Já nas pequenas preciosida­des que são as curtas-metragens, uma palavra para Oásis e O Meu Irmão é Surdo, “que nos apresentam a diferença e a tolerância”; para os bebés,

Balanço Até à Lua, que poderá ser um primeiro filme de ficção científica; e para as crianças em idade escolar, A Galáxia de Yuri, “sobre a procura de paz e segurança no mundo”, ou os temas do momento em Quem Viu o Urso, “onde um passeio em família, para fugir ao telemóvel, se transforma numa grande aventura.”

Celebrar Abril

Neste ano de cinquenten­ário do 25 de Abril, todos os festivais portuguese­s têm no seu ADN uma ideia de programa mais ou menos assente nos princípios da revolução que pôs fim aos anos do fascismo. E o PLAY não foge a essa lógica comemorati­va, apresentan­do na Cinemateca

Júnior (temporaria­mente sediada na sala da Rua Barata Salgueiro) duas sessões alusivas à temática.

Como revela Teresa Lima: “Trabalhámo­s sobre o conceito de liberdade e de mudança, por um lado, através do filme checo Tigre Azul [dia 24, 15.00], em que duas crianças lutam contra o ditador da cidade para que não feche um antigo jardim botânico, e por outro, de uma cine-performanc­e [dia 2, 15.00], entre as imagens de arquivo do ANIM e uma atuação de Leonor Cabral, acompanhad­a pela pianista Catherine Morisseau.

Vamos “brincar” com estas imagens do passado e procurar transmitir como era a escola antes da revolução”.

E por falar na grande revolução nacional, é também pela forte presença portuguesa que se mede o calibre do PLAY, com propostas diversas, de entre as quais se realçam “a curta do realizador e argumentis­ta Luís de Campos, Monte Clérigo, que debate a questão da emigração ilegal, pelo olhar de um adolescent­e que acaba por sentir na pele as dificuldad­es dos trabalhado­res imigrantes em Portugal; A Rapariga de Olhos Grandes e o Rapaz de Pernas Compridas, da jovem Maria Hespanhol, uma animação de excelência que conta uma bela história de amor narrada pelo ator Ivo Canelas; Filme Feliz :), de Duarte Coimbra, que teve estreia recente no Festival de Roterdão e reflete sobre as memórias de infância; A Onda de Maria, de Lígia Resende, um projeto documental que alerta para a escala do problema do plástico nos oceanos; Ana Morphose, do novo talento João Rodrigues, e Foxtale, de Alexandra Allen, duas curtas de animação que tiveram um percurso exímio pelos principais festivais de cinema.”

Esta edição do PLAY conta ainda com a presença da realizador­a de Praga, Lucie Sunková, que conquistou a equipa do festival no último ano, com a curta Suzie no Jardim e a sua técnica de animação de tinta a óleo sobre vidro.

E foi também o ano passado que se deu início a uma missão de incentivo à produção de projetos audiovisua­is para o público infantil. “Criámos o concurso laboratóri­o de ideias e um dia de encontros entre profission­ais da indústria cinematogr­áfica nacional e internacio­nal, com o intuito de partilhar experiênci­as e projetos”, especifica a codiretora. A que se acrescenta, este ano, a participaç­ão do festival num estudo europeu para analisar a perspetiva das crianças sobre o cinema infantil.

Caso para dizer que não falta nada a esta proposta vocacionad­a para o panorama da tenra idade.

Ofilme Os Chapéus de Chuva de Cherburgo (Les Parapluies de Cherbourg), obra-prima do cinema musical assinada por Jacques Demy (1931-1990), chegou às salas francesas há 60 anos – mais precisamen­te, no dia 19 de fevereiro de 1964. Cerca de três meses mais tarde, arrebatari­a a Palma de Ouro do Festival de Cannes, facto hoje em dia bizarro, uma vez que o certame da Côte d’Azur evoluiu no sentido de se fazer apenas com ante-estreias mundiais.

Neste caso, o prémio máximo do maior festival de cinema do mundo é uma memória frequentem­ente desvaloriz­ada quando, de forma automática, se diz (mea culpa) que os cineastas da Nova Vaga francesa nunca venceram em Cannes… Ora, entre os que integraram esse movimento essencial na fundação do cinema moderno, algures entre o final dos Anos 50 e as convulsões de Maio de 68, Demy foi o único que conseguiu tal proeza.

Dito isto, importa acrescenta­r que o “esquecimen­to” de Demy como personalid­ade da Nova Vaga, ainda que historicam­ente errado, tem uma “explicação” a ter em conta. Em boa verdade, o seu gosto por ambiências melodramát­icas contaminad­as pelos artifícios do género musical colocava-o numa posição algo solitária, dir-se-ia “antiquada”, face às experiênci­as que Jean-Luc Godard, Jacques Rivette ou Eric Rohmer iam desenvolve­ndo. Demy não deixou de ser um compagnon de route dos que transforma­ram a revista Cahiers du Cinéma na linha da frente do seu combate estético e político; ao mesmo tempo, desde a sua primeira longa-metragem, Lola (1961), com Anouk Aimée, foi também arquitetan­do um universo de serena e elaborada independên­cia artística.

Com música de Michel Legrand, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo obedece a uma lógica de construção que, ainda hoje, surpreende pelo seu arrojo – como se estivéssem­os perante um objeto que, apesar da passagem dos anos, se distingue por um espírito “vanguardis­ta” que a passagem do tempo não apagou. Afinal de contas, este é um musical que escapa às regras correntes do género ou, mais especifica­mente, aos modelos que esse género consagrou no interior da produção de Hollywood ao longo das décadas de 1930/40/50.

Assim, cruzando a herança dessa produção clássica com uma sensibilid­ade que nunca foi estranha ao jazz, Legrand (personalid­ade nem sempre devidament­e citada e valorizada quando se analisam as dinâmicas interiores da Nova Vaga) construiu uma obra musical enraizada num feliz paradoxo: por um lado, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo possui o fôlego de uma partitura “total”, dispensado a alternânci­a entre cenas cantadas e cenas faladas – ou seja, todos os diálogos são cantados; ao mesmo tempo, por outro lado, em diversas situações o canto “oscila” para o puro recitativo, de alguma maneira integrando a enigmática “banalidade” das falas do quotidiano.

A odisseia romanesca do par interpreta­do por Catherine Deneuve e Nino Castelnuov­o envolve, por isso, um conceito de representa­ção dos atores que integra o realismo mais imediato, a par de uma teatralida­de cujo limite simbólico será a monumental­idade da ópera. Ela, quase uma desconheci­da, ficou a dever a este filme (e a Cannes) o estatuto nunca posto em causa de estrela da França e do cinema francês; ele, secundário talentoso e discreto da produção italiana, viria a ter um dos seus derradeiro­s papéis de cinema em O Paciente Inglês (1996), de Anthony Minghella.

Neste nosso tempo em que muitas componente­s sociais, em particular televisiva­s, alimentam a noção pueril, não poucas vezes demagógica, segundo a qual os filmes se medem pela atualidade mediática dos seus “temas”, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo continua a afirmar-se, 60 anos depois, como exemplo maior de um entendimen­to da arte como exercício de superação das aparências do mundo – e das regras consagrada­s do próprio cinema.

O tratamento de Cherburgo como cenário “teatral” decorre de um entendimen­to narrativo em que os sinais mais imediatos do quotidiano apelam a uma transcendê­ncia dos gestos e das ações da qual nasce o encantamen­to do cinema. Demy relançaria tudo isso no seu filme mais célebre – As Donzelas de Rochefort (1967), de novo com Deneuve, agora ao lado da sua irmã Françoise Dorléac –, reafirmand­o também esse gosto de transfigur­ação das cidades que acolhem as nossas utopias, tanto quanto as nossas desilusões.

Lançado em 1964, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, de Jacques Demy, é uma obra-prima do musical cujo espírito “vanguardis­ta” o tempo não apagou.”

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Ana Morphose, uma animação entre as propostas portuguesa­s.
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Mighty Afrin: In the Time of Floods, um dos filmes em destaque.
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de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo: o original de 1964 e o da cópia restaurada em 2013.
Dois cartazes de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo: o original de 1964 e o da cópia restaurada em 2013.

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