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O passar dos anos veio mostrar que, para o cidadão comum, a culpabilidade ou inocência de Carlos Cruz não é, e nunca foi, uma questão de razão ou ciência, mas antes um artigo de fé, de impressão, de convicção.”
do para o euro, e, em boa verdade, foi espectador e cúmplice do século XX português, pois entrevistou desde o Soldado Milhões, herói da Primeira Guerra, até ao Tino de Rans, anti-herói da actualidade. Apesar de ser de esquerda, ajudou Lucas Pires em campanha e, a convite de Marcelo, foi a uma reunião na sede do PSD, à Rua de Buenos Aires, coordenada por Joaquim Letria, para auxiliar a corrida do professor à Câmara de Lisboa. O que viu, porém, desiludiu-o: “A reunião, que era suposto ser de trabalho, foi quase reduzida a um monólogo do candidato Marcelo Rebelo de Sousa. Fiquei com a sensação de que ele não queria ideias ou opiniões, mas apenas estar acompanhado por pessoas que lhe dissessem que ele tinha razão.”
Anos depois, em Maio de 2011, João Soares Louro contactou-o, pedindo-lhe para ser mandatário da campanha de João Soares à CML. Usou para o efeito um argumento siciliano (“a família Soares não esqueceria a atitude que eu tomasse”) e Carlos Cruz aceitou, estranhando depois que uma jornalista do Público lhe tivesse perguntado por que é que, em plena campanha, a 15 dias das eleições, o contrato de arrendamento do Cinema Europa, que Cruz queria resolver, foi mudado para a titularidade da Câmara de Lisboa, para Soares aí instalar um centro cultural. Na preparação do Euro2004, foi assediado por Tomás Taveira, na mira de fazer estádios, e apresentou-o ao presidente da Câmara de Leiria, não mais do que isso, garante. Tempos depois, recebeu do arquitecto uma tela de Pedro Calapez, coisa que acha natural e normal, a ponto de a revelar na sua autobiografia. Na candidatura ao Euro, ficou boquiaberto com a ligeireza e o à-vontade com que, à porta fechada, os nossos dirigentes desportivos se gabavam de ter corrompido árbitros e de mil traficâncias de influências, mas não tem pejo em revelar que, em três ocasiões distintas, a nossa candidatura foi muito para lá da linha: numa delas, Gilberto Madaíl, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, entregou a um seu homólogo estrangeiro um envelope cheio de notas de dólar, assim comprando o seu voto (e, depois, novos envelopes para que este os desse a outros presidentes federativos); noutra ocasião, o mesmo Madaíl prometeu ao presidente da Federação Holandesa que iriam “tratar de tudo” para que o neto deste viesse estudar e viver em Portugal; e, noutra ocasião ainda, o presidente de uma federação de Leste pediu como contrapartida do seu voto uma moradia no Algarve, no valor de 100 mil euros, tendo Cruz falado do assunto com José Sócrates, que lhe respondeu enfaticamente “Ó Carlos Cruz, não podemos perder isto por uma questão de dinheiro! Era só o que faltava!”, dando luz verde para a operação (depois, ao que parece, o dinheiro não foi entregue e dali tudo lavou as mãos: contactado pelo estrangeiro corrupto, Cruz remeteu para os seus superiores, Madaíl chutou para Sócrates, este mandou Cruz falar com Madaíl e o assunto morreu, ou assim parece).
Em política, despreza Cavaco, que designa por “um economista de Boliqueime”, olvidando que, nesse seu transe classista, também poderiam chamar-lhe “um locutor de Parceiros de São João”, sendo esse aliás, e como atrás já se disse, o maior elogio que lhe pode ser feito. Proclama-se também agnóstico e de esquerda, mas não esconde ter ficado impressionado com os vira-casacas do PREC, que na véspera estavam com o Estado Novo e depois surgiram como os mais inflamados dos revolucionários, dispostos a sanear tudo e todos ou até a censurar documentários britânicos sobre a Segunda Guerra, apenas por falarem da Operação Barbarrosa e mostrarem a URSS a ser invadida por Hitler.
Não esperava o 25 de Abril (“nunca suspeitei de nada”) e, nesse dia, optou por ficar em casa, como mandava o MFA. No 1.º de Maio, já na rua, teve receio da multidão que o cercou no Campo Grande, quando ia ao volante de um burguês BMW, comprado dois anos antes. No plano sentimental, houve também revolução, ou, como ele diz, “o estado de graça da minha vida conjugal sofreu um abalão com o 25 de Abril. Vários abalões”. A mando de Eanes, então presidente da RTP, chegou a ter uma G-3 no cimo da secretária, para o que desse e viesse, e observou enojado as vis acusações então desferidas contra Artur Agostinho ou Amália, as loucuras de Vasco Gonçalves e os mandados de captura em branco assinados por Otelo, “dias em que ninguém parava para pensar e todos andavam a reboque dos acontecimentos”. Classifica o que então viveu na RTP como uma “bagunça perigosa” e uma “bandalheira”, dando vários exemplos disso, alguns até caricatos, outros aterradores.
Como repórter, cobriu o célebre discurso de Salazar em Braga, 1966, nas comemorações da Revolução Nacional, e o velório deste nos Jerónimos, em 1970, a vinda de Paulo VI a Fátima, as cheias trágicas de 1967, o Rallye de Monte Carlo, as 500 Milhas de Indianápolis, as 24 Horas de Le Mans, o Rallye TAP, a ascensão de Costa Gomes à Presidência e a visita deste à ONU e à Casa Branca, em Outubro de 1974, bem como as negociações dos Acordos de Alvor, cuja transmissão televisiva do discurso de Costa Gomes se atrasou quase uma hora pelo singelo motivo de o Presidente se ter distraído no bar do hotel à conversa com alguns conselheiros da Revolução.
Conheceu tutti quanti (a lista é interminável: Louis Armstrong, Françoise Hardy, Sylvie Vartan, Mireille Mathieu, Tina Turner, Roger Moore, Shirley Bassey, Dionne Warwick, Elis Regina, Rodrigues Miguéis, François Mitterrand, Tierno Galván, o Dalai Lama), entrevistou Christian Barnard na companhia de João Lobo Antunes, então jovem apresentador televisivo, ouviu o Gainsbourg e a Birkin a cantarem Je t’aime, moi non plus numa boate de Cannes. Enquanto acompanhava o Mundial de 1966, conheceu Ringo Starr numa discoteca londrina e, por seu intermédio, acabou por fazer a estreia mundial do álbum Revolver aos microfones da Renascença. A convite de Villas-Boas, foi o sócio n.º 2 do Cascais Jazz e esteve ligado, por diversas vezes, ao Festival da Canção, lamentando que Paulo de Carvalho não tivesse seguido o seu conselho de cantar E Depois do Adeus em inglês, o que o teria poupado a um desonroso e muito injusto último lugar na Eurovisão de 1974.
Entre 1975 e 1979, e a convite de Alfredo Barroso, chefe de gabinete de Soares no MNE, esteve ao serviço da Missão Portuguesa na ONU, em Nova Iorque. Viveu aí o “apagão” de 1977 e os domingos amenos do Central Park, aí falou com Woody Allen num
brunch dominical no P.J. Clarke’s, dando-lhe os parabéns pelo recém-estreado Annie Hall, conversou com Sónia Braga, teve várias “namoradas de recibo verde” e gozou as delícias do pré-sida, com encontros casuais de uma noite rematados pelo clássico nova-iorquino “Your appartment or mine?”.
Um dia, quando comprava móveis para casa, conheceu Joyce, uma modelo oriunda de uma família judaica multimilionária, que lhe abriu as portas das mansões semitas de Long Island e dos seus ambientes extravagantes. Depois, regressado a Portugal, prosseguiu a sua carreira de sedutor – de mulheres e de audiências –, envolvendo-se com muitas colegas de profissão, hoje figuras famosas, mas cujos nomes tem a prudência e o bom gosto de não desvendar. Há pouco, publicou Conte-Me Tudo, resenha de algumas das suas grandes entrevistas, com destaque para uma com Álvaro Cunhal, em que falaram de galgos afegãos, entre outras bichezas.
De súbito, tudo mudou. Em finais de 2002, surgiram as primeiras notícias sobre o seu alegado envolvimento numa rede pedófila com epicentro na Casa Pia de Lisboa. Pouco depois, foi detido, seguindo-se a acusação, o julgamento, a prisão. Sempre batalhou pela sua inocência, que mantém, e até publicou dois livros a proclamá-la (Preso 374, de 2004; Inocente para Além de Qualquer Dúvida, de 2016), mas não foi esse o entendimento dos sucessivos magistrados que o julgaram e, crê-se, de uma parcela significativa da população portuguesa, outrora sua fã devota. A natureza do crime prestava-se, e presta-se, a julgamentos sumários, em regra condenatórios e, pior ainda, indeléveis e eternos. Durante meses, durante anos, no meio de intensa boataria, Portugal debateu com calor e paixão, e não pouco voyeurismo, coisas tão variadas e entusiasmantes como os sucessos na “casa de Elvas” e num apartamento na Avenida das Forças Armadas, as voltas e reviravoltas de Carlos Silvino, Bibi, as escutas a António Costa e a Ferro Rodrigues (este com o inolvidável “estou-me cagando para o segredo de justiça”), o approach zé-povinho e gingão do causídico José Maria Martins, mais tarde suspenso por nove anos do exercício da advocacia (Diário de Notícias, de 23/9/2015), o blogue Muito Mentiroso, o PGR Souto de Moura e o procurador João Guerra, hoje juiz do Supremo, o singular juiz Rui Teixeira, alvo de um processo disciplinar em 2015 por rejeitar documentos com o novo Acordo Ortográfico, o psiquiatra Rui Frade, que afinal o não era, um alegado sinal no ventre de
Paulo Pedroso, a prisão deste em São Bento e o seu regresso ali, em arruaça de deputados que nem o mobiliário parlamentar poupou, e, por fim, mas não por último, as manchas no pénis de Carlos Cruz, tema a que este dedica várias páginas de um dos seus livros de auto-defesa.
Como sempre, a opinião pública tratou este caso como um Benfica/Sporting e, por todo o lado, das paragens de autocarros aos gabinetes ministeriais, passando pelos cafés de província ou pelas repartições do Estado, formularam-se juízos implacáveis, definitivos, ora num sentido ou no outro, com base apenas no que a comunicação social ia transmitindo do processo e seus avanços, em reportagens amiúde manipuladas por um dos lados da liça (a jornalista Inês Serra Lopes, filha do principal advogado de Cruz, acabaria condenada por crime de favorecimento pessoal por ter tentado que uma funcionária da Casa Pia incriminasse um suposto sósia de Carlos Cruz, reformado da RTP por razões psiquiátricas). Enquanto tal sucedia, poucos falaram do que noutros lugares se passava, fosse no silêncio das sacristias, fosse com o desaparecido Rui Pedro, jamais encontrado, ou fosse, enfim, com um antigo professor de Física da St. Julian’s, “Mike”, o qual, condenado a 34 meses de prisão por vários crimes sexuais com adolescentes, aproveitou o langor da justiça portuguesa para fugir rumo a parte incerta, onde, por ser incerta, nunca foi apanhado.
O passar dos anos veio mostrar que, para o cidadão comum, a culpabilidade ou inocência de Carlos Cruz não é, e nunca foi, uma questão de razão ou ciência, mas antes um artigo de fé, de impressão, de convicção. Quanto ao crime, seja ele culpado ou inocente, o certo é que Cruz pagou a pena que a Justiça entendeu aplicar-lhe. Agora, só falta a indemnização devida às vítimas, matéria ainda hoje entregue aos tribunais (quanto ao Estado, foi condenado em 2006 a pagar mais de dois milhões de euros a 44 vítimas de abusos na Casa Pia de Lisboa). Passaram quase 30 anos sobre os factos, o apresentador já entrou e saiu da cadeia, o mesmo sucedendo a Carlos Silvino, o qual, após 12 anos na prisão, rumou em 2022 a um centro de acolhimento, por ter perdido a casa onde morava. Trinta anos, ou quase, sem Justiça. Mais do que a culpa ou a inocência do cidadão Carlos Cruz, é isso, é essa inconcebível tardança, que a todos nós interpela – ou, melhor dito, envergonha.
*Prova de vida (33) faz parte de uma série de perfis