Diário de Notícias

Helena Canhão “A formação médica não é cara para o Estado em Portugal”

Quanto investe o Estado Português nos alunos de Medicina? Os estudantes ficam a dever a formação ao Estado? A médica, professora, diretora da Nova Medical School, e também presidente do Conselho de Escolas Médicas, explica ao DN a sua visão. E considera q

- ENTREVISTA ANÃ MAFALDA INÁCIO

Não é a primeira vez que a médica, professora e diretora da Nova Medical School fala ao DN das caracterís­ticas do Curso de Medicina, que diz ser diferente dos outros, e da formação médica, em si, em Portugal. Do lado de quem forma, a preocupaçã­o está focada na perda de qualidade e no que é preciso fazer para mudar o estado atual. Do lado de quem governa, tenta-se soluções para fixar médicos no serviço público, onde se forma a esmagadora maioria dos futuros médicos.

O mote para esta conversa é a medida colocada novamente em cima da mesa pelo Programa Eleitoral do PS que prevê a vinculação dos jovens médicos ao SNS após o curso. Helena Canhão diz que o importante não é a origem da proposta, mas a medida em si. E, na sua opinião, falando estritamen­te como médica e professora, já que como presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesa­s (CEMP) diz não o poder fazer – “não costumamos discutir medidas de partidos e todas as posições são conjuntas” –, “num mundo global como o de hoje a medida não faz sentido”.

Para Helena Canhão, é preciso criarem-se condições para voltar a dar aos futuros médicos o sentimento de que “o seu trabalho tem um propósito”, que “estão a realizar uma missão”. Aos médicos formadores é preciso dar o “reconhecim­ento pelo que fazem”, até porque “a esmagadora maioria nada recebe por este trabalho”. Às universida­des, é preciso dar “mais autonomia”. “O pior que pode acontecer ao país é a formação médica perder qualidade.”

O PS incluiu no seu programa eleitoral a vinculação de médicos ao SNS após o curso. É uma solução para fixar médicos no SNS e não deixar que o ensino se degrade? Para mim é indiferent­e se é uma medida do PS ou de outro partido. Tanto faz a origem. E o que tenho de imediato a dizer é que não é uma solução.

Porquê?

Porque em Portugal temos licenciatu­ras de três anos para quase todos os cursos com uma propina de 697 euros e mais dois anos de mestrado, e aqui as propinas são definidas pelas escolas. Já não há mestrados integrados, exceto para alguns cursos, como Medicina, em que a formação é de seis anos e durante este período os nossos estudantes pagam 697 euros de propina.

Um dos argumentos usados é que o Curso de Medicina é mais caro que outros e o Estado paga essa formação...

É mais caro. O custo por aluno é cerca de 12 mil euros ao ano – por isso é que as faculdades privadas que já estão no mercado estão a cobrar esse valor. Mas nas faculdades públicas, o Estado tenta compensar este valor com verba do Orçamento do Estado e dá às faculdades cerca de 4500 euros por aluno ao ano. O restante valor (mais de seis mil euros) tem de ser coberto com receitas próprias das universida­des, que o fazem com muita dificuldad­e. E, para isto, vendemos formação avançada e outros serviços. Mas o que quero dizer é que o Estado, em si, não tem um custo excessivo ou proporcion­al ao custo do estudante. Ou seja, a formação médica não é cara para o Estado em Portugal. É preciso que as pessoas percebam isto. O valor que o Estado paga diretament­e está aquém do valor que um estudante custa.

E o Estado somos todos nós, com os impostos que pagamos... Comparativ­amente, as famílias contribuem com muito mais, com propinas, material, alimentaçã­o, estadia e outros custos indiretos. E as universida­des também. É certo que o Estado investe na Educação e nas universida­des, mas, apesar de tudo, a formação médica em Portugal sai muito mais barata ao Estado do que em muitos outros países europeus. Por exemplo, na Dinamarca é o Estado que paga, de facto, a cada estudante o seu curso – as famílias não pagam nada mais do que os seus impostos e as universida­des também. O Orçamento do Governo já contempla o pagamento do custo dos estudantes. Em Portugal, não. Portanto, o Estado Português paga um custo abaixo do real para a formação médica pré-graduada. Deste ponto de vista, o argumento de que os estudantes deveriam compensar o Estado faz sentido?

Não. Mas há ainda outro aspeto: quando o estudante acaba os seis anos de formação académica já é médico, mas não pode sair do curso e começar a exercer. Tem de estar mais um ano vinculado a um hospital, em que é Interno de Ano Comum. Só depois pode exercer em qualquer sítio, mas se quiser fazer uma especialid­ade tem de fazer a Prova Nacional de Acesso e concorrer às vagas que abrem nos hospitais, de acordo com a capacidade formativa de cada um, com a sua nota. E, na esmagadora maioria, estas vagas são em hospitais públicos – em unidades privadas não chegam a 2%. Logo aqui, o jovem médico estabelece um contrato com o SNS, onde trabalha para aprender durante mais quatro a seis anos. A especialid­ade de clínica geral é quatro anos, as especialid­ades médicas cinco e as cirúrgicas seis. Durante estes anos, o médico já trabalha para pagar a sua formação e já está a compensar o Estado. Mesmo que faça tudo direitinho, um aluno de Medicina entra aos 18 anos na faculdade, acaba o curso aos 24 e depois está, pelo menos, até aos 30 a trabalhar para o Estado com um salário que não é sequer suficiente para o trabalho que faz. Portanto, no meio disto tudo não considero que o investimen­to do

Estado não esteja já a ser compensado pelo trabalho do médico interno.

Tendo em conta o mundo global em que se vive, a medida faz sentido para fixar médicos?

O mundo evolui. No meu tempo, entrei em 1985 na faculdade, consideráv­amos que tínhamos uma carreira pela frente num sítio e ficávamos. As gerações de agora são completame­nte diferentes, mudam de emprego dez vezes ou mais. E não é uma medida destas que os fará ficar. O que estamos a ver nas faculdades é os jovens, logo nos primeiros anos, a quererem saber como é a Medicina noutros países. O facto de as condições no SNS não serem boas está fazer com que os jovens médicos comecem a escolher outras áreas, como a indústria farmacêuti­ca ou consultori­a. Ou que vão fazer a especialid­ade noutros países, onde os cursos portuguese­s são reconhecid­os, com salários mais altos e condições diferentes. Hoje, para um jovem, viver em França, na Alemanha ou no Reino Unido é praticamen­te o mesmo que viver em Portugal. As distâncias foram encurtadas e os jovens vão-se embora se não tiverem condições. Não vale a pena este tipo de medidas.

O que deve ser feito?

É preciso voltar a ter um SNS onde

“Comparativ­amente (com o Estado), as famílias contribuem com muito mais, com propinas, material, alimentaçã­o, estadia e outros custos indiretos. E as universida­des também.”

Processo EPU N.º 5269

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