Ilker Çatak “Cheguei a chamar nazi a um professor”
O realizador do filme alemão coqueluche de 2023, A Sala de Professores, falou ao DN sobre a sua experiência de aluno problemático. Um cineasta de origens turcas, cuja obra não era conhecida comercialmente em Portugal.
O ponto de partida para si para este filme passa por algum trauma seu com um professor na sua infância?
Tive problemas com os professores, desafiava-os muito! Cheguei a chamar nazi a um professor e foi um escândalo. Sempre fui um dos miúdos chatos, difíceis... acabei por ser expulso. Estudei na Alemanha, mas depois tive de vir para Istambul, cidade onde conheci o meu coargumentista, e aí tudo era diferente: tive de usar uniforme e gravata, uma experiência muito autoritária. Houve uma altura em que, numa aula, tivemos um professor que nos revistou! Pediram-nos para deixar as carteiras nas mesas e irmos todos para a frente, tal como no filme, 20 e tal anos depois. Esse foi literalmente o ponto de partida. Mas para a construção do guião falámos com vários professores, sabíamos que a Educação é um tópico muito sensível. Se não acertássemos no realismo íamos ser massacrados. E foi a ouvir docentes que percebemos que as revistas e os roubos acontecem com frequência. A única diferença é que a revista tem de ser voluntária. Enfim, tem a ver com o princípio da privacidade dos alunos, que, claro, não conhecem esse seu direito. Ou seja, um aluno tem de ter coragem e dizer ao professor: “Não, não vou mostrar a minha carteira!” Isso nunca acontece, pois ele sente que o professor é o seu chefe.
Há algo de profundamente perturbador no seu filme. Isso foi algo que o surpreendeu, de algum modo, ou esse foi logo o intuito inicial?
Nem sei, confesso, mas deve ter a ver com a forma, a maneira como filmo, a música... Gosto de ter conseguido fazer um filme inquietante, mas, por outro lado, quis que tivesse uma data de momentos cómicos... É importante que as pessoas tenham pausas para rir. Mas o que perturba neste filme é, de certa forma, o facto de todas as personagens terem razão e de uma sensação de perigo. De alguma maneira, estamos num terreno minado. Uma escola onde o mal pode acontecer a qualquer momento. Creio que é bom estar a dizer-me que o filme perturba. No cinema atual é raro os filmes terem essa carga... Temos tantos filmes no mercado e tão poucos a conseguirem tocar de facto as pessoas.
E é um filme que põe em debate muitas questões sociais destes dias.
O cinema serve para isso mesmo. Antes de mais, é um filme que têm diálogo geracional, até porque quando olhamos para a escola estamos a ter uma miniatuisso ra da sociedade. Temos política, o jornal, etc. É o local onde se convocam os grandes temas num pequeno espaço.
A Sala de Professores ultrapassa a dimensão alemã, pois todos fomos à escola e há esse traço de identificação universal.
As escolas no mundo inteiro são mais ou menos iguais, com os grupos de WhatsApp, os pais, as associações de estudantes, etc. No começo pensava que estava a fazer um filme muito alemão, mas depois percebi que era mesmo muito universal. Prova disso é a forma como fomos tão bem recebidos em todo o lado, mesmo do outro lado do mundo, como, por exemplo, na Coreia! O filme ganhou uma qualidade educacional. Gosto de personagens que deixam uma marca em pessoal mais novo.
De repente, a escola ficou na ordem do dia no cinema. Está aí Os Excluídos, de Alexander Payne, e Cannes celebrou Culpado, Inocente, Monstro, de Kore-Eda, e não há muito estreou-se Uma Profissão Séria, de Thomas Lilti, todos filmes que abordam o lugar da escola. Que coincidência!
Pois, é o tal fator universal! Todos andámos na escola ou temos filhos que estão na escola, uma instituição que faz parte da nossa vida. Curiosamente, no processo de preparação percebemos que na Alemanha não tínhamos assim tantos filmes sobre este lugar, apenas comédias juvenis. Consegue compreender como é que o ano passado ficou de fora da competição do Festival
de Berlim e foi relegado para a secção Panorama?
Isso é algo que tem de perguntar ao Carlo Chastrian, o diretor da Berlinale. Mas tenho uma teoria: os grandes festivais apostam sempre naqueles cineastas que já têm história entre as anteriores seleções e é impossível fazer-lhes o downgrade para secções menos nobres. Bem, foi por isso que não tive acesso à competição, embora não me possa queixar: o Panorama correu muito bem para o filme. Mas claro que queríamos ter estado em competição.
Será que a indústria de cinema alemã olha para si como o novo Fatih Akin? Pergunto isso pelo facto de serem ambos de origens turcas...
Tenho sempre cuidado com essas comparações. O Fatih é o Fatih e já alcançou coisas que nem sonho alcançar. Mas fico muito lisonjeado, embora ele não esteja retirado – não quero dizer que sou o novo Fatih Akin! Fiquei muito agradecido pelas suas palavras nos Prémios do Cinema Alemão. É como que um professor.
“É um filme que têm diálogo geracional, até porque quando olhamos para a escola estamos a ter uma miniatura da sociedade. Temos política, o jornal, etc. É o local onde se convocam os grandes temas num pequeno espaço.”
Nesta época do ano em que os Óscares dominam as conversas dos espectadores e cinéfilos, é quase inevitável estabelecer ligações entre filmes nomeados.Vem isto a propósito do facto de, na última semana, ter chegado às salas Os Excluídos, nomeado para Melhor Filme (por sinal, um dos melhores esforços do irregular Alexander Payne), que rima com A Sala de Professores, de Ilker Çatak, a produção alemã nomeada na categoria de Melhor Filme Internacional, em estreia a partir desta quinta-feira.
Porquê a rima? Ambos os filmes têm professores como protagonistas... mas não podiam ser mais distintos entre si. Se Os Excluídos é um globo de neve que nos faz mergulhar no espírito dos muito americanos Seventies, através de uma nota genuína de comédia melancólica e redentora, A Sala de Professores segue uma certa linha contemporânea de nervo firme que estuda a escola na sua vertente social mais dura e complexa.
Ao vermos pela primeira vez a professora Carla Nowak (interpretada com todos os músculos do corpo por Leonie Benesch), somos levados a simpatizar de imediato com a figura: alguém de consciência moral sólida, que põe o bem-estar dos alunos acima de tudo, aqui no contexto de uma investigação interna da escola motivada por uma série de roubos.
Passam-nos brevemente pela memória cenas semelhantes de As Ervas Secas, de Nuri Bilge Ceylan (ainda em cartaz), filme que coloca em confronto ambíguo um professor e uma aluna, mas também retratos de docentes especiais na vida dos jovens aprendizes, como O Professor Bachmann e a Sua Turma (2021), fabuloso documentário alemão de Maria Speth, que contém algo da mesma realidade multicultural de A Sala de Professores, e Recreio (2021), da belga LauraWandel, em que a única fonte de luz é a doce presença de uma professora.
Esse filme deWandel tem, aliás, um traço mais forte em comum com o filme de Ilker Çatak: a escola é observada como uma prisão, um campo de batalha que nos prepara, mal ou bem, para o mundo lá fora.
Dir-se-ia que Çatak procurou, num olhar espacialmente concentrado – sem acesso à vida das personagens fora do recinto da escola –, as dores da primeira forma de instituição que todos experimentamos. No caso, também (ou sobretudo) as dores de uma jovem professora de Matemática e Educação Física, recém-chegada, que quer começar com o pé direito a sua relação com os alunos, agilizando todas as situações que estiverem ao seu alcance. É, de resto, isso que leva Carla/Benesch a tentar descobrir o autor dos roubos que acontecem na sala dos professores, e assim evitar mais acusações baseadas num disfarçado racismo. Como? Ela cria uma armadilha e deixa a câmara do seu portátil ligada... Mas ao levantar uma suspeita não totalmente confirmada pela suposta prova do registo de imagem, vê-se na mesma posição dos colegas que, antes, olhou com um princípio de superioridade, por saber distinguir uma atitude certa de uma atitude errada no momento de abordar os adolescentes.
Na pele da professora
Ao adotar a estrutura do thriller paranoico, Çatak encerra-nos na aflição de Carla, que está embrulhada nas consequências volumosas do seu bem-intencionado procedimento, e em rota de colisão com o seu aluno preferido, por acaso, filho da funcionária suspeita dos roubos. Mas o arrepio constante provocado por este A Sala de Professores tem menos que ver com essa engrenagem sensorial do género ao serviço da história, do que com todo o ruído interior que vai crescendo e crescendo e crescendo.
Quando, numa aula, a protagonista fala das “verdades universais verificáveis” enquanto base da ciência moderna, ao mesmo tempo que se depara com o caos humano dentro e fora da sala, num ambiente institucional implacável, percebe-se que o filme de Ilker Çatak está quase exclusivamente focado no monstro social que pode nascer de qualquer tomada de decisão, no modo como o ressentimento pode escalar a partir de qualquer julgamento, seja ele precipitado ou não.
Perguntas como “quem é o culpado” ou “quem é que agiu bem ou mal” não são o ponto deste filme vigoroso, que faz os possíveis por deixar o espectador imerso na dúvida e ambivalência, integrantes da dimensão prática da vida, que no fundo já se confunde com a própria cultura da suspeita. Como se dissesse nas entrelinhas da ação que só nos resta aprender a nadar num mundo hipersensível, onde o idealismo e a lógica chocam contra a parede do real – um toque de parábola que lhe retira um bocadinho de efetividade.
Dito isto, não há uma aprendizagem feliz em A Sala de Professores, e parte do ganho está aí. Afinal, a escola não é uma promessa de segurança, mas o lugar onde as sementes da guerra são lançadas pelo menor descuido. O que fazer? Talvez gritar como quem nasce outra vez, para libertar a corrente elétrica nociva dos laços sociais.
Depois do Urso de Ouro o ano passado com Sobre L’Adamant, eis que de repente mais um documentário de Nicholas Philibert, Averroès et Rosa Park, recuperando alguns doentes psiquiátricos do filme premiado. Mas esta é uma sequela documental que é tudo menos “as cenas que não couberam” em Sobre L’Adamant ou mais uma outra adenda.
O aclamado cineasta, alvo de homenagem da última Festa do Cinema Francês, em Lisboa, continua então a filmar doentes psiquiátricos de Paris, mas desta vez filma-os em internamento em duas alas de um hospital psiquiátrico de Paris, o Esquirol, nomeadamente a ala Averroès e a Rosa Park. E filma sobretudo os encontros e as conversas com os psiquiatras. Conversas sobre possíveis altas, os problemas do dia a dia no hospital, as medicações, mas sobretudo toda a dor de estar condicionado de liberdade e de um contacto com o mundo lá fora. Temos casos de depressão austera, de tentativas de suicídio e de um grave burnout.
Acima de tudo, está o respeito humano e a dimensão inteira de cada uma daquelas pessoas, nunca os reduzindo a “deficientes” ou a processos médicos. Essa é a grande dádiva humana de um filme que, tal como Sobre L’Adamant não faz do fascínio das doenças mentais uma curiosidade, conseguindo, sim, mostrar um processo médico que tenta encontrar saídas para o desespero que dali sai. E a tal dose de humanismo cinematográfico está sobretudo numa pista para se tentar perceber que alguns daqueles internados podem ter esperança num futuro fora daquelas paredes.
É aí que o filme surpreendentemente acaba por nos tocar ainda mais do que o anterior. De forma prática, este é bem mais compacto do que Sobre L’Adamant – ficamos a conhecer melhor cada um daqueles homens e mulheres a lutar para encontrar o seu lugar na sociedade, quase todos sufocados por uma solidão que é a grande inimiga da reabilitação.
Para tal, partilha-se uma aura de observação que gere impecavelmente os tempos das conversas entre médico e paciente, uma ilusão de cinema sem cortes, bom senso do respeito perante o tom. E é por isso que estão todas as emoções à flor da pele. Se calhar, é um filme que convoca todos os géneros: comédia, investigação, drama e até musical. Forte, muito agudo.
O bolo iraniano
Na competição, o fim de semana em Berlim trouxe a diversidade justa. De um lado a amabilidade de My Favourite Cake, de Maryam Moghaddam & Behtash Sanaeeha, do outro Olivier Assayas a filmar a sua intimidade em Hors du Temps.
No filme iraniano, acompanhamos um dia na vida de uma senhora de 70 anos, viúva e avó, que ao sentir-se sozinha convida um senhor taxista da sua idade para ir conhecer a sua casa. A dada altura, percebemos que estamos a ver uma espécie de espartano manguito à polícia de moral iraniana, repensando o estrangulamento da mulher iraniana nestes dias.
A fórmula é a da comédia romântica “fofa”, mas a simpatia do filme não anula o seu corajoso ato de denúncia e, talvez por isso, a ovação de pé tão demorada no Berlinale Palast fosse pela ausência forçada do casal dos realizadores: as autoridades iranianas não permitiram a vinda dos autores e os seus passaportes foram retidos. Castigo hediondo que só envergonha este Irão.
Assayas só para fãs
No caso de Assayas a fórmula é simples: encenar o período em que passou parte do confinamento na casa de campo dos falecidos pais juntamente com a namorada e o irmão. Vincent Macaigne representa Assayas mas a voz-off éa do próprio realizador que discorre sobre cinema, a vida e a arte, não se furtando a uma certa caricatura de germofóbico e de pedante intelectual. Um piscar de olhos cheio de piada que brinca também com a sua obsessão por David Hockney.
Só que o cinema na primeira pessoa pode ser também um gesto de dor e de romance – a presença da sua ex-companheira, Mia Hansen-Love, é um inesperado gancho dramático. Por muito refinadamente romântico que seja, o grande problema deste tempo suspendido de um criador a confessar tudo é o seu ar blasé orgulhosamente francês e sem fazer um único esforço de poder ir além da piada interna da cinefilia (e melomania, o seu irmão é um jornalista de música).
O que realmente conta e imprime em Hors du Temps é a capacidade de Assayas filmar uma ideia de natureza e primavera sem peneiras nenhumas. Isso é extremamente humilde, quase a fazer redenção às sessões de metralhadora de diálogos de citações. E há também um mecanismo que interessa muito: a possibilidade de o cinema poder ser um lugar de pequenas crónicas dentro de uma longa-metragem. Neste caso, crónicas dos tempos do covid. Está já comprado para Portugal...