Que o Chega e o seu líder são um prodígio de contradições e falsidades não é novidade; é porém menos analisada a sua vitimização persistente, refletida numa catadupa de processos na Justiça. O homem que passa a vida a caluniar e insultar os outros vai par
outras atuações discriminatórias e incendiárias de ambos.
É evidente que o sistema judicial serve precisamente para dirimir conflitos entre cidadãos, e um político ou um partido têm, como qualquer outra pessoa ou organização, direito ao bom nome. Mas é também óbvio que quando esse político e partido se notabilizam por um sistemático ataque ao bom nome de outras pessoas e organizações – para enumerar todas as vezes que usaram a calúnia e insulto não chegariam todas as páginas deste jornal; basta porém lembrar como, no debate com Rui Tavares, AndréVentura o acusou de querer “toda a gente à solta, violadores, homicidas, terroristas, tudo”; e, a propósito das eleições dos Açores, chamou ao PSD “prostituta política” –, pretenderem apresentar-se como vítimas do exato tipo de ataque que é a sua principal estratégia não revela só a sua essencial má-fé; é uma deliberação de condicionamento das críticas e um manifesto do seu anseio autocrático. O anseio de quem pretende dizer tudo e um par de botas sobre todos e não admite ouvir qualquer crítica – nem sequer, imagine-se, referências a decisões judiciais.
Mas, apesar de não me lembrar de ver um partido e/ou um seu líder, na democracia portuguesa, a processar tanta gente, entre opositores políticos, jornalistas e comentadores, não dei conta de que esta atuação esteja a ser – ao contrário do que se passou com outros políticos que recorreram aos tribunais por alegadas ofensas ao bom nome – alvo de debate ou análise.
Como em quase tudo o queVentura e Chega fazem, parece aplicar-se-lhes um critério diferente, único, feito à medida; viu-se isso nos recentes debates televisivos, quando a maioria dos comentadores mais uma vez (já é costume) valorizou como “eficaz” o facto de o líder da extrema-direita passar o tempo todo a interromper os outros e a proferir falsidades e acusações delirantes e insultuosas.
Essa valorização da conduta boçal, ameaçadora e falsificadora da realidade de Ventura, que a decalcou de Trump e corresponde, na sua pose de bully de taberna, a uma espécie de “boneco” de “macho-alfa” (recorde-se por exemplo como o ex-presidente americano se portou num debate, em 2016, com a opositora Hillary Clinton, colocando-se, de forma ameaçadora, atrás dela), contrasta com a imagem lamentosa e frágil, choramingas até, que o líder do Chega traça de si nos processos judiciais, e que está plasmada nas citações que iniciam este texto.
Perante os tribunais, o homem que foi para um debate das presidenciais (com Marcelo Rebelo de Sousa) chamar “bandidos” e “bandidagem” a um grupo de pessoas negras a quem nem sequer identificou – como se bastasse a respetiva cor de pele para que o crisma se justificasse –; que quis “devolver à sua terra” a deputada negra Joacine Katar Moreira como se lhe coubesse decidir quem tem lugar em Portugal; que, como candidato à Câmara de Loures pelo PSD, em 2017, deliberou promover-se estigmatizando a comunidade cigana; e cujo partido colocou cordas de enforcamento no portão do Tribunal Constitucional quando este se debruçava sobre a sua legalidade, apresenta-se como um coitado sensível e ansioso, que não aguenta que o confrontem com as suas afirmações discriminatórias e insultuosas e morre de medo de sair à rua.
Um homem que, como deu como provado o tribunal na sentença que comecei por citar, “entendeu que a Justiça o tinha condenado por utilização de ‘linguagem racista’” mas tem o desplante de querer processar um jornal por noticiar isso mesmo – porque, afirma, isso o faz sofrer muito.
O homem que decerto está neste momento mais desmoralizado, mais nervoso, mais impaciente, vexado e inconsolável que nunca. É que o presidente do PSD, Luís Montenegro, lhe disse, cara a cara no debate entre os dois, que jamais fará acordos com o Chega porque este tem “opiniões populistas, xenófobas e racistas”. Quantos processos irão Ventura – depois de se recompor do desgosto, claro – e o Chega apresentar na Justiça contra o PSD e respetivo líder? Nem dá para imaginar.