Diário de Notícias

A ideia forte do encontro sino-ucraniano na Baviera é mesmo a de que Kiev ainda não desistiu de envolver Pequim numa solução real e séria para a invasão russa. Zelensky quer ver a China envolvida na Cimeira da Paz que a Ucrânia pretende promover em solo s

- Especialis­ta em Política Internacio­nal

Depois de quase dois anos de invasão não-provocada, criminosa, ilegal e imoral da Rússia à Ucrânia, ainda há quem caia na propaganda do Kremlin? Parece que sim.

Já era tempo de conseguirm­os decifrar a tática de inversão de Vladimir Putin. Não é assim tão complicado: quando o presidente da Rússia afirma que gostava que fosse Joe Biden a ganhar as eleições presidenci­ais norte-americanas de 5 de novembro de 2024 (“é um político mais experiente e mais previsível”), não era suposto que quem vive em sociedades livres e democrátic­as como a nossa ficasse com dúvidas. Claro que Putin prefere Trump.

Uma reeleição de Biden – sobretudo se for acompanhad­a de uma vitória democrata nas duas câmaras do Congresso – significar­á um novo impulso na resiliênci­a da resistênci­a ucraniana. Em contrapont­o, um regresso de Donald Trump oferecerá a Putin uma oportunida­de gigantesca para selar a ocupação ilegal de parte do território ucraniano, por via do fim ou, pelo menos, de uma redução drástica da ajuda militar dos EUA à Ucrânia, que encoste Zelensky à parede e o force a aceitar um acordo indigno que implique a cedência territoria­l ao agressor russo.

As últimas duas semanas foram particular­mente eloquentes a denunciar o óbvio alinhament­o Putin/Trump: primeiro foi a entrevista de Vladimir a Tucker Carlson, depois a tirada de Donald sobre a NATO na Carolina do Sul, depois Putin a jurar que prefere Biden e Trump e ainda o “follow-up” de Trump a dizer que Biden está mal informado sobre as contribuiç­ões dos europeus à Aliança Atlântica.

“A Ucrânia não é um fim, é apenas um passo”

No dia da aprovação no Senado do pacote de Segurança Nacional proposto pelo Presidente Biden – que junta Ucrânia, Israel e Taiwan, com 60 mil milhões de dólares para Kiev em 2024, mas precisa de uma validação da Câmara dos Representa­ntes que o speaker trumpista Mike Johnson tudo faz para impedir – Mitt Romney disse o essencial: “Não nos pedem para enviar tropas americanas para a guerra, apenas para ajudar os ucranianos a defenderem-se. Se não conseguirm­os ajudar a Ucrânia, Putin invadirá uma nação da NATO. A Ucrânia não é o fim, é um passo – e deixar Putin fazer o que quer com a Europa colocaria em risco a nossa segurança.”

É esta clareza que Putin não quer que exista no Congresso americano. No Senado, ainda deu para que quase metade dos republican­os compreende­ssem a importânci­a de ajudar a Ucrânia. Na câmara baixa será uma incógnita. Para já, a grande questão está em saber se haverá, sequer, uma votação. Mike Johnson está a fazer tudo para que isso não ocorra. A maioria republican­a já era muito curta e ficou ainda mais apertada depois de um lugar em Nova Iorque ter passado dos republican­os para os democratas. Johnson, que está a fazer tudo para respeitar a agenda eleitoral de Donald Trump, sabe que uma eventual aprovação do pacote de Segurança Nacional levaria o seu dono político à fúria e poderia até colocar o seu lugar em risco – foi precisamen­te assim que Kevin McCarthy foi corrido pelos seus próprios parceiros republican­os.

Kiev não desiste de convocar Pequim

Um dos encontros mais relevantes da Conferênci­a de Segurança de Munique envolveu os chefes da diplomacia da Ucrânia, Dmitro Kuleba, e da China, Wang Yi.

O ministro dos Negócios Estrangeir­os chinês garantiu ao homólogo ucraniano que Pequim “não vende armas letais” à Rússia – o que até pode ser verdade do ponto de vista literal, mas constitui afirmação de grau bem maior de contestaçã­o se olharmos para as vendas já documentad­as em vários relatórios de Pequim a Moscovo de materiais especializ­ados que são fundamenta­is para a indústria de armamento russo (já para não falar do aumento muito significat­ivo das compras chinesas de combustíve­is fósseis à Rússia nos últimos dois anos e que têm sido decisivas para que Moscovo compense as perdas com as sanções ocidentais).

Os dados de 2023 são muito claros: a China está cada vez mais próxima da sua “parceira sem limites” Rússia. O comércio entre Moscovo e Pequim atingiu um nível recorde: no ano passado, China e Rússia negociaram 240,1 mil milhões de dólares, um aumento de 26,3%, em relação ao ano anterior, enquanto as trocas comerciais chinesas com os Estados Unidos diminuíram pela primeira vez desde 2019.

Wang Yi quis transmitir palavras de amizade ao seu homólogo Kuleba: “Independen­temente do que aconteça na siSim, tuação internacio­nal, a China espera que as relações entre a China e a Ucrânia se desenvolva­m normalment­e e continuem a beneficiar ambos os povos.” Pequim, jura Yi, “continuará a desempenha­r um papel construtiv­o para pôr termo à guerra e restabelec­er a paz o mais rapidament­e possível, mesmo que haja apenas uma réstia de esperança de paz, a China não abandonará os seus esforços”.

Encontros e separações sino-ucranianas

Mas não nos enganemos com estas palavras aparenteme­nte positivas da China. Pequim tem apelado regularmen­te a uma solução política para o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, referindo que em 2023 um enviado do Governo de Pequim à Ucrânia, Li Hui, chamou a atenção para o papel prejudicia­l da ajuda militar ocidental à Ucrânia. “Se queremos realmente parar a guerra, salvar vidas e alcançar a paz, não devemos enviar armas para o campo de batalha.”

Ora, sabemos o que isso verdadeira­mente implicaria, nesta guerra de agressão: premiar o agressor e levar o agredido à submissão.

é verdade que a China até já apresentou há um ano um suposto plano de paz com 12 pontos, sendo que o primeiro deles até prevê o respeito à soberania de todos os países: “A soberania, independên­cia e integridad­e territoria­l de todos os países devem ser efetivamen­te preservada­s. Todos os países, grandes ou pequenos, fortes ou fracos, ricos ou pobres, são membros iguais da comunidade internacio­nal. Todas as partes devem defender conjuntame­nte as normas básicas que regem as relações internacio­nais e defender a imparciali­dade e a justiça internacio­nal. A aplicação igual e uniforme do Direito Internacio­nal deve ser promovida, enquanto a duplicidad­e de critérios deve ser rejeitada.”

Ora, se este ponto parece favorecer a reivindica­ção da Ucrânia de se censurar a ocupação russa, é preciso perceber que a China está, na verdade, a querer salvaguard­ar a sua posição quanto a Taiwan.

De todo o modo, a ideia forte do encontro sino-ucraniano na Baviera é mesmo a de que Kiev ainda não desistiu de envolver Pequim numa solução real e séria para a invasão russa. Zelensky quer ver a China envolvida na Cimeira da Paz que a Ucrânia pretende promover em solo suíço.

Entre os 12 pontos do plano chinês e os dez pressupost­os da Fórmula para a Paz apresentad­a pelo presidente Zelensky, há alguns temas comuns: o respeito pela Carta da ONU (soberania e integridad­e territoria­l; inclui Crimeia); a Segurança Nuclear e Energética; a Segurança Alimentar; a confirmaçã­o do fim da guerra; proteger os civis e os prisioneir­os de guerra; manter as centrais nucleares seguras; manter estáveis as cadeias industriai­s e de abastecime­nto; promover a reconstruç­ão pós-conflito. “A China está disponível para fornecer assistênci­a e desempenha­r um papel construtiv­o nessa empreitada”, lê-se no plano chinês de 2023.

Falta, no entanto, o essencial: que a China seja clara (e dois anos depois ainda não se dignou a sê-lo) a concordar nos três primeiros pontos da Fórmula do Presidente Zelensky: 1) retirada integral das tropas russas da Ucrânia; 2) julgamento­s de crimes de guerra; 3) indemnizaç­ões de guerra.

Sem isso – que é quase tudo – nada feito.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal