Godard para sempre
A obra frondosa e multifacetada do cineasta francês Jean-Luc Godard está de volta aos ecrãs do circuito comercial português através da exibição de 11 longas-metragens em cópias restauradas (a partir de quinta-feira). Destacam-se os títulos do período da Nova Vaga, a par de referências emblemáticas das décadas de 1980/90, incluindo um inédito, Detective, com Johnny Hallyday.
Se é verdade que o amor do cinema só existe através de um militante conhecimento da sua história, então não é menos verdade que, em anos recentes, no mercado português, um capítulo importante de celebração desse amor resulta do trabalho de distribuidores e exibidores da chamada área independente. Eis um novo e belíssimo exemplo de tal trabalho: a partir de quinta-feira, dia 22, a Leopardo Filmes, vai lançar nada mais nada menos que 11 filmes de Jean-Luc Godard (1930-2022) em cópias digitais restauradas.
A selecção de títulos privilegia o período da NovaVaga francesa, a começar por O Acossado (1960), um dos títulos fundadores do movimento, a par de Os 400 Golpes (1959), de François Truffaut, e Hiroshima, Meu Amor (1959), de Alain Resnais, quando a “política dos autores” se exprimia nas páginas dos Cahiers du Cinéma. O Desprezo (1963) e Pedro, o Louco (1965), por certo os mais célebres desse período, estão também incluídos, juntamente com Uma Mulher É uma Mulher (1961), O Soldado das Sombras (1963), Os Carabineiros (1963), Alphaville (1965) e Made in USA (1966). Saltando no tempo, será ainda possível ver ou rever três filmes que ilustram exemplarmente os caminhos cruzados da multifacetada actividade pós-Maio de 68 de Godard: Nome: Carmen (1983), Detective (1985), este nunca estreado no circuito comercial português, e Valha-me Deus (1993).
O ciclo apresenta-se com o sugestivo título “For ever Godard” (à letra: “Para sempre Godard”), designação “roubada” ao seu For Ever Mozart (1996), um filme que se organizava como uma colagem de histórias e personagens que trabalham em cinema, perdidas num mundo em que as marcas da guerra (Sarajevo é uma cidade que surge como verdadeira “personagem”) desafiam o método e as angústias de qualquer narrativa. Os 11 filmes estarão em exibição em salas de todo o país, nomeadamente as que são citadas na informação oficial da distribuidora: Nimas (Lisboa), Teatro Campo Alegre (Porto), Charlot (Setúbal), Teatro Académico de Gil Vicente (Coimbra), Theatro Circo (Braga) e Centro de Artes e Espectáculos (Figueira da Foz).
Walt Disney com sangue
Há um mito negativo que tende a banalizar o labor de Godard durante a Nova Vaga, descrevendo-o como uma trajectória experimental em que o jogo das formas dispensa, e até resiste, a qualquer possibilidade de relação com o mundo à sua (nossa) volta. Contrariando o simplismo dessa tese, vale a pena recordar as singularidades temáticas e simbólicas que encontramos em tal trajectória.
Assim, podemos dizer que a longa-metragem de estreia, O Acossado, é um “filme sobre filmes”, dos mais belos, e também mais radicais, a pontuar as grandes viragens da história do cinema. Jean-Paul Belmondo apresenta-se mesmo como um herdeiro directo, desencantado e ambíguo das ambiências do cinema “noir” de Hollywood, sendo Humphrey Bogart o seu modelo inspirador.
O certo é que nada disso decorre de uma atitude de mero formalismo: a relação de Belmondo com a personagem de Jean Seberg pode ser vista como uma reinvenção da escrita melodramática do cinema clássico, mas acontece que as situações que vivem — a começar pelo passeio nos Campos Elíseos, enquanto ela vende o New York Herald Tribune — ilustram já uma preocupação que o universo “godardiano” nunca abandonará. A saber: a metódica observação das transformações das cidades, processo que tem o seu cume crítico na inventariação dos efeitos sociais, familiares e sexuais do crescimento urbano de Paris, observado em 1967 no sublime Duas ou Três Coisas sobre Ela (sendo “ela”, como é esclarecido num cartão logo no começo do filme, a “região parisiense”)
Filmes como O Soldado das Sombras e Made in USA integram mesmo referências muito concretas à atualidade política. No primeiro (Le Petit Soldat no original), as alusões à guerra da Argélia levaram à sua interdição pela autoridades francesas; foi rodado logo após O Acossado, mas a estreia só ocorreria em 1963, já depois do lançamento de Uma Mulher É uma Mulher, uma homenagem plena de ironia ao género musical, e Viver a sua Vida (1962), outra crónica parisiense construída a partir da personagem de uma prostituta. Por sua vez, Made in USA reflecte um profundo cepticismo face à decomposição dos valores políticos e jornalísticos, sendo filmado como uma quase farsa que faz lembrar certos elementos visuais da animação e da banda desenhada — nas palavras do próprio Godard, trata-se de um “Walt Disney com sangue”, ou seja, um “filme político”.
A dimensão visceralmente social que há no cinema de Godard não exclui alguns magníficos “desvios” por géneros que denunciam o seu artifício narrativo. Os Carabineiros e Alphaville poderão mesmo ser descritos como ficções distópicas sobre mundos imaginários: no primeiro, encenando uma guerra em que a repressão das mulheres e o menosprezo da arte são expressão da mesma violência; no segundo, recuperando Lemmy Caution, o detective criado pelo escritor Peter Cheyney, e também Eddie Constantine, na altura o seu intérprete no cinema, desta vez envolvido numa aventura surreal num país ditatorial em que foram proibidos conceitos como o “amor” ou a “poesia”.
Viver a sua vida
Vale a pena lembrar que o pós-Maio de 68 foi vivido por Godard como um tempo de muitas e drásticas interrogações, aliás bem expressas a partir de Tudo Vai Bem (1972), exercício de introspecção emocional e política com o par Jane Fonda/Yves Montand. Sem esquecer que a tais interrogações se somou, a partir de 1975, com Número Dois, o uso de câmaras e recursos de produção vindos do espaço televisivo.
A partir de Salve-se quem Puder (1980), Godard passa a viver na Suíça, próximo de Lausanne (onde o seu amigo Freddy Buache dirigia a Cinemateca). Independentemente da integração de cenários parisienses, Nome: Carmen e Detective são produtos desse período de “reclusão” artística que se manteria até ao final da vida.
A proposta de Nome: Carmen é bem reveladora de uma dinâmica de pensamento que pontua muitos momentos fulcrais da filmografia de Godard, levando-o a interes
sar-se pelas formas de comportamento das personagens mais jovens, por vezes até mesmo das crianças — recordemos o tratamento do território infantil na notável série televisiva, rodada em video, que é France Tour Détour Deux Enfants (1980). A Carmen interpretada pela holandesa Maruschka Detmers (uma revelação absoluta, então com 20 anos) é alguém que se envolve numa intriga de “polícias & ladrões” que Godard encena como uma reconversão trágica da Carmen, de Bizet — por desconcertante e fascinante contraste, na música do filme o mais importante são os derradeiros quartetos de cordas de Beethoven…
Quanto a Detective e Valha-me Deus, ambos envolvem a decomposição de todo um imaginário clássico do heroísmo e, sobretudo, dos heróis masculinos que, obviamente não por acaso, surgem interpretados por figuras míticas da França “profunda”: Johnny Hallyday e Gérard Depardieu, são convocados para viver, respectivamente, aventuras pontuadas por uma mafia implacável e para questionar o primitivo desejo dos deuses experimentarem as emoções dos humanos.
A lição de Picasso
O que nos reconduz ao facto de as personagens de Godard, mesmo quando tendem para um qualquer modelo abstracto, espelharem a ânsia muito humana de “viver a sua vida” para lá das regras impostas por essa sociedade de consumo que, afinal, se consolidou no mesmo período em que nasceu a Nova Vaga. Os dois títulos mais conhecique dos deste ciclo — O Desprezo e Pedro, o Louco — são fábulas modernas sobre essa perdição muito humana que um dos mestres de Godard, Bertolt Brecht, resumiu num célebre axioma: “Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver”.
O Desprezo ocupa um lugar muito especial na galeria de obras sobre o mundo do próprio cinema. Tendo como base o romance homónimo de Alberto Moravia, nele encontramos duas estrelas bem diferentes, unidas pelo mesmo olhar cinéfilo: Brigitte Bardot, na altura uma das actrizes mais populares muito para lá das fronteiras francesas, e Fritz Lang, o mestre alemão que Godard convidou para interpretar o papel de… Fritz Lang. Nos cenários paradisíacos da ilha italiana de Capri, seguimos a odisseia de rodagem de um filme (aliás, o filme dentro do filme é uma adaptação da Odisseia, de Homero), deparando com a vertigem propriamente cinéfila da vida filmada que se transfigura em vida vivida. Ou como é dito na frase de André Bazin, lendário mentor dos autores da Nova Vaga, que abre O Desprezo: “O cinema substitui ao nosso olhar um mundo que se adequa aos nossos desejos.”
Enfim, Pedro, o Louco emerge como o paradoxo absoluto. Essa outra odisseia que é a viagem de Anna Karina e Jean-Paul Belmondo através da França apresenta-se como uma aventura do mais puro romantismo que, a pouco e pouco, se vai transfigurando na agonia irreversível de qualquer ilusão romântica. Mais do que isso: a ternura mitológica do par já não é suficiente para continuar (a filmar), uma vez que, como disse o próprio Godard, vamos perdendo a capacidade de colocar as questões que realmente importam. Por altura do lançamento do filme, numa entrevista aos Cahiers du Cinéma (nº 171, outubro 1965), Godard evocou a lição de Picasso, aliás várias vezes citado em Pedro, o Louco: “Colocar problemas não é uma atitude crítica mas uma função natural. De um automobilista que coloca problemas de circulação, dizemos apenas que ele se desloca — de Picasso, dizemos que ele pinta.”