Ler ou não ler, eis a questão
A filmografia de Jean-Luc Godard está recheada de citações e adaptações de obras literárias. E não só: muitas das suas personagens surgem como leitores, num ziguezague constante entre o velho e o novo.
Há um lugar-comum que gosta de proclamar que Jean-Luc Godard é “apenas” um cineasta de citações, enchendo os seus filmes com palavras escritas por outros. De facto, semelhante ponto de vista ignora que a citação pode não ser uma mera cópia ou caução cultural, mas sim um deslocamento: as mesmas palavras, num novo contexto, adquirem novas significações, impulsionando novos modos de sentir e pensar. Em qualquer caso, sublinhemos aquilo que o mesmo lugar-comum não consegue ver — literalmente! Ou seja: para lá das muitas adaptações que Godard assinou, no seu cinema proliferam personagens que são leitores, de tal modo os livros que transportam são elementos vivos da sua mise en scène.
Convém não esquecer que os autores da Nova Vaga eram amantes dos livros. E não apenas porque, enquanto críticos (sobretudo nos Cahiers du Cinéma), foram também escritores — também porque a sua educação, além dos filmes que iam descobrindo na Cinemateca Francesa, era indissociável dos livros com que cresceram. Numa entrevista ao L’Express (1 maio 1997), Godard dizia mesmo que a literatura lhe deu “uma consciência moral”.
Em Pedro, o Louco, por exemplo, Jean-Paul Belmondo é não apenas um ávido consumidor de livros, mas também alguém que vai anotando os seus pensamentos numa escrita elegante que surge regularmente nas imagens (com a letra do próprio Godard). Em Alphaville, a descoberta das emoções proibidas por parte de Natacha von Braun, a personagem de Anna Karina, começa com a leitura de Capitale de la Douleur, de Paul Élouard. Em Made in USA, de novo Karina tem consigo o romance Adieu la vie, adieu l’amour..., tradução de Kiss Tomorrow Goodbye, de Horace McCoy (o autor de Os Cavalos Também se Abatem, filmado em 1969 por Sydney Pollack). Enfim, Atenção à Direita (1987) resulta de uma adaptação muitíssimo livre de O Idiota, de Dostoievski, surgindo o próprio Godard como intérprete do príncipe que anda a ler... O Idiota. Tudo isto sem esquecer que a sua derradeira longa-metragem, lançada em 2018, se chamou O Livro de Imagem.
Talvez que uma cena de O Acossado nos possa ajudar a encontrar a moral destas histórias. Assim, há uma situação em que vemos, na rua, uma jovem a vender os Cahiers du Cinéma. Aproxima-se de Jean-Paul Belmondo, mostrando a revista e pergunta-lhe: “Não tem nada contra a juventude?” A resposta é breve e concisa: Prefiro os velhos.”J.L.