A guerra das estrelas de Dumont e a doideira de Kristen Stewart
Uma paródia de Bruno Dumont, L’Empire e um objeto demente da nova era do cinema queer, Love Lies Bleeding, de Rose Glass, com uma sangrenta Kristen Stewart. Assim vai o Festival de Berlim...
Uma insolente lição de filosofia selvagem dada pelo cineasta-filósofo Bruno Dumont sob a forma de ficção-científica. L’Empire, que tem coprodução da Rosa Filmes, de Joaquim Sapinho, é uma sátira aos filmes da saga de George Lucas, Star Wars, é verdade, mas mais verdade é assumir-se como um prolongamento de O Pequeno Quinquin, projeto televisivo do realizador que gozava com uma França embrutecida e rural. Aliás, os dois polícias dessa comédia estão aqui bem presentes nesta intriga que nos mostra como um Messias recém-nascido pode ser a chave para uma guerra inter-galática entre dois impérios de forças extraterrestres.
Entre um delírio metafísico provocador e ideias de ficção-científica ancoradas na piada do cliché, o exercício de farsa faz-se primeiro descrevendo a povoação costeira de Nord-Pas-de-Calais, local costeiro onde a calma parece reinar, sobretudo entre a comunidade piscatória. Mas a chegada de uma jovem mulher sexy da cidade parece mostrar como a realidade esconde um segredo espacial. Extraterres
Joaquim Sapinho a ganhar outro cineasta único na sua coleção de nomes que produz, Bruno Dumont.
tres lutam pelo futuro do nosso planeta e o nascimento de uma criança pode ser o sinal de controlo de uma luta que envolve batalhas entre frotas de naves com o feitio de catedrais.
Enquanto isso, os corpos jovens dos seres alienígenas dentro dos corpos humanos não parecem resistir à atração sexual, nem mesmo quando estão dos lados distintos da contenda. De um lado, o Bem,
do outro o Mal. A questão, sempre filosófica, passa por destrinçar o que é o “bem”, o que é o “mal”, ou como o corpo e a mente podem ser adversários.
Rutura radical com os predicamentos do filme “bem-feitinho”, L’Empire faz do excesso a sua arte, estendendo o tempo da blague, fazendo do alarve o punchline da piada, sobretudo quando explica o mistério do desejo dos homens e
das mulheres com decapitações com sabres de luz. Este Luke Skywalker pacóvio tem a Força invertida e assume a sua ereção.
Enfim, para Dumont as questões da moral e do nosso propósito na Terra são as mais sérias. Mas é na seriedade que a irrisão pode funcional melhor, mesmo que o pastiche, em si, não tenha ideias verdadeiramente divertidas ou novas. Vale pelo gesto, vale pela sugestão.
E é sempre um prazer ver um cineasta a ser glorioso e com ambições kamikaze no seu falhanço consentido. Trata-se realmente da “força” de Dumont.
Mas que body horror é este!?
Entre o filme negro lésbico e a fantasia mais arty aí está Love Lies Bleeding, de Rose Glass, o filme mais mediático desta fase do festival, mostrado em regime de fora-de-competição na Berlinale Speciale. Um grande lesbian show grotesco, animadamente de “género”, um Frankenstein com pedaços de Coen, gore e ativismo de causa. Um filme de emancipação feminina que vai aos Anos 1980 inventar uma trama de crime para mostrar um caso de amor entre uma jovem filha de um mafioso e uma body builder com desejo sexual abrangente. Sexo, violência a rodos e um surrealismo que faz romper pelo ecrã uma América de estrada como há muito não se via no cinema americano.
À frente desta rocambolesca loucura está uma ótima Kristen Stewart que é tão eficaz nos momentos mais íntimos como nos sangrentos. Uma atriz que se entrega ao papel com uma coolness invulgar, afastando as dúvidas iniciais se não estaria a fazer militância queer nesta escolha. Não está mesmo, está apenas a ser cúmplice de um desejo de transgressão campy que ainda incomoda muita gente.
Rose Glass é uma mensageira de uma porta do novíssimo cinema americano livre. Uma cineasta que pode estar numa vanguarda de cinema de multigénero que capitaliza o cinema como forma de uma arte total e onde podem caber corpos mutantes que não nos pacificam. O humor endiabrado do filme passa por aí.
Rumores de Cannes
Entretanto, nos bastidores do Mercado começa-se a falar do que não entrou em Berlim e ficou guardado para Cannes. É sempre por esta altura que a especulação ganha corpo sobre o que pode vir a competir para a Palma de Ouro. Filmes como Mickey 17, de Bong Joon-ho, Furiosa: Uma Saga Mad Max, de George Miller, e Megalopolis, de Francis Ford Coppola parecem já certos como fora-de-competição, mas para a Palma de Ouro, nos últimos dias ganharam peso os novos de Yorgos Lanthimos (Kinds of Kindness, com Emma Stone), Brady Corbert (The Brutalist), Miguel Gomes (Grand Tour), Paul Schrader (Oh, Canada); Pablo Larraín (Maria,o biopic de Maria Callas), Michel Franco (Dreams, com Jessica Chastain), Audrey Diwan (Emmanuelle), Jim Jarmuch (Father, Mother, Sister, Brother, com Cate Blanchett) ou Andrea Arnold (Bird).
Para além de Gomes, sente-se que pode ser uma edição de Cannes com mais portugueses...
Por ocasião dos 100 anos do armistício do final da Primeira Guerra Mundial tive o gosto de plantar nos jardins da Gulbenkian dois choupos e um álamo em homenagem à paz e à dignidade humana. Nada melhor do que as árvores como símbolos do respeito e do amor à vida. Recordei o facto no dia em que comemorámos o centenário do nascimento do arquiteto António Viana Barreto (1924-2012), coautor com Gonçalo Ribeiro Telles desses extraordinários jardins, modelos do paisagismo enquanto encontro entre a natureza, a cultura e a arte. A exposição que se encontra aberta por estes dias fala por si. De facto, não se compreende o património cultural como realidade viva sem a ligação entre os monumentos, os documentos, as tradições, a natureza, a paisagem, as tecnologias e a criação contemporânea. “A paisagem tende a constituir uma unidade global de funcionamento ecológico, apesar da diversidade dos seus elementos constituintes. O sistema de relações que se verificam no território tende a estabelecer um entrelaçamento, cada vez maior, do espaço urbano com o espaço rural”. Quantas vezes ouvimos os artífices dos jardins Gulbenkian lembrar com estas palavras a importância deste diálogo criador entre a humanidade e a natureza. Os dois paisagistas compreenderam, assim, que essa relação constitui o modo mais sublime da criação e o melhor exercício da sabedoria humana.
Viana Barreto frequentou o Curso Livre de Arquitetura Paisagista, dirigido por Francisco Caldeira Cabral no Instituto Superior de Agronomia, tendo sido o primeiro profissional com esta formação a entrar para um serviço do Estado, na Direção Geral dos Serviços de Urbanização, onde criou a Divisão de Arquitetura Paisagista. Quando a Direção Geral passou a designar-se do Planeamento Urbanístico, a Divisão ampliou a sua intervenção tendo sido constituídas as delegações do Porto, Coimbra, Faro, Madeira e Açores. Tal foi decisivo para impor a profissão em todo o País. Tratava-se não apenas de considerar o território a ocupar, mas a paisagem a ordenar. E que é a paisagem etimologicamente senão a imagem do país, como expressão da identidade e da cultura? Assim, António Viana Barreto, como o seu amigo Gonçalo, tornaram-se Maestros da Paisagem, como se regessem a complexa orquestra da natureza. E como disse o nosso homenageado, tudo o que fez foi inspirado na convicção de que “é do conjunto da articulação e ponderação de todas as vontades que se constrói qualquer coisa”. Nesse trabalho magnífico, temos de recordar Edgar Fontes, Álvaro Ponce Dentinho e Fernando Pessoa – e hoje a Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas. Todos permitiram a consolidação dos conceitos e metodologias do ordenamento do território. E lembremos o pioneiro Plano de Ordenamento Paisagístico do Algarve, com Albano Castelo Branco e Álvaro P. Dentinho, que nos permite ter uma visão de futuro, que hoje continua atualíssima, a partir do entendimento de uma região com potencialidades longe de estarem plenamente aproveitadas.
E se falamos de método, temos de lembrar os ensinamentos do paisagista escocês Ian McHarg, autor de Design with Nature, obra de cabeceira destes pioneiros, para quem os pilares fundamentais da política ambiental são a Conservação da Natureza e o Ordenamento do Território. E quando se fala em desenvolvimento sustentável, importa ter bem presente o exemplo de António Viana Barreto, para além de um discurso de atualidade, uma vez que se trata de questões de sobrevivência da Humanidade que apenas podem ser salvaguardadas com método, persistência e determinação. Quando foi criada a Direção-Geral do Ordenamento, o primeiro responsável foi Viana Barreto e quando pensamos nos instrumentos de ordenamento do território e nas áreas protegidas temos de lembrar a plêiade desses pioneiros e o que nos legaram: além dos jardins da Gulbenkian, os planos da Torre de Belém ou das quintas das Conchas e dos Lilases. Todos ganhámos. Há que continuar.