Sérgio Graciano “Estes são filmes que servem para apelar à nossa identidade”
Depois de filmar a biografia de Salgueiro Maia, Sérgio Graciano assina Soares é Fixe, onde temos um Mário Soares na luta eleitoral de 1986. Estreia amanhã. Nesta entrevista o realizador conta como consegue filmar num ritmo alucinante: depois deste já tem pronto Camarada Álvaro, sobre Cunhal, e mais duas longas-metragens. Ninguém para Graciano, nem mesmo a rejeição da crítica.
Éo realizador português que mais filma. Depois de Soares é Fixe, Sérgio Graciano tem já pronto Camarada Álvaro (cujo título pode mudar para Camarada Cunhal), projeto feito em sintonia com aquele e onde as personagens circulam entre ambos. Mais à frente, estreará Os Papéis do Inglês, encomenda de Paulo Branco rodada em Angola e a partir de Ruy Duarte de Carvalho. Como se não bastasse, O Meu Jardim, pago pelo seu próprio bolso, está em fase de finalização. É impressionante o ritmo de trabalho de um cineasta que ganhou tarimba na ficção televisiva e que também é produtor na sua Caos Calmo.
Em Soares é Fixe filma, sobretudo, a noite das eleições presidenciais de 1986, o momento em que Mário Soares vence Freitas do Amaral numa lógica de “lugar fechado”, feito com poucos meios e a gerir uma certa sobriedade narrativa, evitando atores a imitar figuras, como o próprio Soares, Diogo Freitas do Amaral, Maria Barroso, João Soares, Proença de Carvalho e até Cunhal. Um filme com ares de telefilme pensado pelo produtor José Francisco Gandarez como parte das celebrações dos 50 anos de Abril...
Tem a noção de que muitos vão ficar à espera de um Soares mais empático e com um carisma que esta vossa versão não tem?
Sim e isso custa-me! Sei que o Soares era um bonacheirão, mas isto tem a ver com um momento particular, a noite das eleições, uma noite onde todos lhe diziam “vais ganhar!”. Se ele dissesse “vou ganhar!”, o filme tinha 10 minutos. Quando temos um herói, há que ter um anti-herói! O que filmo é o optimismo dos outros e a insegurança de Soares. Narrativamente era o que fazia mais sentido e também há que ter em conta que havia muita tensão: ele tinha 62 anos e esta era a grande oportunidade da vida dele.
Este projeto, que também alberga o caso da fuga de Peniche de Álvaro Cunhal, para si é um encomenda ‘pura e dura’? Encomenda ‘pura e dura’, mas com uma grande dose de coração. É importante criar memórias e o cinema serve para as criar. Temos uma geração de portugueses que não faz a mínima ideia de quem é Soares ou o Cunhal, a mesma que também desconhecia Salgueiro Maia. Estes são filmes que servem para apelar à nossa identidade. Temos muitas figuras importantes que não valorizamos, figuras cujas histórias não são contadas.
Talvez houvesse algum receio de uma abordagem no caso de Mário Soares, figura ainda tão na memória de tantos nós... Resquícios da ditadura...Essa é uma limitação! Há que não ter medo de comunicar e contar histórias!
Fez cerca de seis novelas e sei que não demoniza essa linguagem televisiva, mesmo quando muitos acreditam que esse é um dos problemas de uma certa mediocridade do cinema português...
Não, não demonizo: há maus exemplos tanto na telenovela como no cinema. Não me posso esquecer de onde vim: dos programas de entretenimento. Depois, fiz o meu percurso. Se é o percurso normal de quem faz cinema em Portugal? Não, mas não deveria ser uma limitação.
E é um exemplo do do it yourself, desde o momento de Assim
Assim, em 2012. Prefere fazer com menos do que não fazer? Claro, prefiro sempre filmar, mas hoje já estou um bocadinho melhor. Antes, falava à tarde de um projeto e no dia seguinte estávamos a rodar. Agora já acho que é preciso reunir algumas condições...
Já não basta o “bora lá”...
Isso. Já não tenho 20 anos. Mesmo assim, a minha vontade de filmar não parou.Tenho ainda muitas histórias para contar.
Ao contrário de Soares é Fixe, o filme sobre Cunhal é outro género...
Sim, será completamente diferente. Trata-se de um thriller e é sobre a fuga do Cunhal do Forte de Peniche. Se vamos contar toda vida de uma pessoa que viveu tanto, arriscamo-nos a que fique tudo fragmentado e com aspetos desligados uns dos outros.
Com este inacreditável ritmo de produção, como é que sente que o meio do cinema português olha para si?
Não sei e nem ligo, ou então já teria parado.
Mas sente-se um pouco à parte? ...Sinto-me! Mas sinto que cada vez que trabalho com as pessoas do cinema, as experiências são sempre boas e isso dá-me alento para me mentalizar que consigo fazer bem. E eu quero fazer bem... Muito mais do que o olhar de fora, preocupa-me o olhar das pessoas de dentro. Quero que as pessoas saibam que sei fazer. Tudo à volta já não me interessa.
Nunca se sentiu injustiçado?
Não me quero focar muito nisso, embora saiba que preconceito sempre haverá.
Sente que há uma família do cinema português? Ou famílias? Sinto que sim, mas já nem estou muito dentro disso. Acho que alguns já perceberam o meu caminho e não tem de ser igual aos outros. Tem ido a muitos géneros e um dos seus próximos filmes é Os Papéis
do Inglês, produzido por Paulo Branco... Muitos ficaram surpreendidos com essa vossa ligação.
O Paulo costuma dizer que me comprou tempo por trabalhar com uma grande intensidade. E esse é um filme feito com um outro tempo. Trata-se de um argumento diferente num país que conheço bem, Angola. Fiz uma abordagem diferente, mas um realizador pode fazer Os Papéis do Inglês e também o Assim Assim. Trata-se de um filme narrativo, mas com um lado muito poético. Já vi o resultado final muitas vezes e gosto do que está ali. Será possível poder ser selecionado num festival internacional relevante?
Creio e tenho esperança de que sim. O Meu Jardim é o filme que se segue. Acredito muito na história? Sim, é uma ideia que já estava há muito na minha cabeça. Trata-se de um filme narrativo na onda do thriller. Nasceu da vontade do Miguel Borges e da Bruna Quintas quererem voltar a fazer algo em cinema comigo e eu falei com a argumentista Filipa Pope. Depois de ela escrever a história, começámos logo a filmar, com o meu dinheiro. É um tipo de cinema que me deixa fazer o que realmente quero. Ninguém me cobra nada - gosto muito de ser livre a fazer cinema. Num, teve aquela ideia de se internacionalizar? De fazer um filme lá fora, por exemplo em inglês? Pensei, claro. Gostava. Quem disser que não quer ou que nunca pensou nisso está a mentir. É a mesma coisa que dizerem que os Óscares não interessam nada. Pelo menos 95% dos realizadores portugueses pensa em fazer um filme internacional. Até agora ainda ninguém conseguiu.
Écomum dizer que a palavra “saudade” não tem tradução em outras línguas. De facto, as minhas experiências de tradução automática não devolveram resultados que incluíssem os matizes de significado que lhe associamos. O célebre aforismo italiano “traduttore, traditor” (tradutor, traidor) diz-nos alegremente que não há equivalência entre línguas e, antes, uma transferência que pode retirar ou acrescentar sentido. As línguas carregam em si histórias milenares que se perdem quando desaparecem e, por isso, é cada vez mais reconhecida a importância da sua preservação.
Desde 1999, Portugal tem uma segunda língua oficial – o mirandês – que continua a ser oferecido como disciplina em Miranda do Douro, com elevadas taxas de frequência por parte dos mais novos. É uma língua que se formou a partir do latim, num período anterior à formação de Portugal, na região de Astúrias e Leão, e que sobrevive até hoje entre fronteiras. A sua aprendizagem serve decerto para fortalecer uma identidade própria e reforçar os vínculos entre gerações. Além de estar em curso a criação do Instituto de Língua e Cultura Mirandesa, têm sido desenvolvidos instrumentos digitais, como o tradutor Pertués-Mirandés, que facilmente nos permite navegar entre os dois idiomas.
Hoje, 21 de fevereiro, Dia Internacional da Língua Materna, presto homenagem ao mirandês, nossa outra língua oficial, e a todas as línguas originárias que estão em desaparecimento porque deixaram de ser faladas ou são utilizadas por grupos muito restritos. Assim vamos perdendo o valor da diversidade e o património cultural e científico que essas línguas transportam.
Vale a pena enunciar a origem deste dia internacional instituído pela UNESCO em 1999 (o mesmo ano em que o mirandês foi reconhecido como língua cooficial de Portugal). A história remonta ao célebre minuto zero de 15 de agosto de 1947, contado de forma magistral por Salman Rushdie em Os Filhos da Meia-Noite, quando o governo britânico transfere a soberania para a Índia e o Paquistão, que passam a dois Estados independentes. Na altura, o Paquistão impôs o urdu como língua única, ignorando o bengali, falado pela maioria do Paquistão Oriental (atual Bangladesh). Os protestos tiveram o seu momento mais dramático a 21 de fevereiro de 1952, quando a polícia abriu fogo e morreram vários manifestantes conhecidos como Mártires da Língua. Depois da independência, em 1971, esse dia passou a feriado nacional e, na sequência de várias tentativas, foi reconhecido como Dia Internacional da Língua Materna.
Ao mesmo tempo que parece inevitável a tendência para uma língua única (e um pensamento igualmente único), existe um reconhecimento cada vez maior, nomeadamente por parte dos especialistas em educação, da importância da diversidade linguística e de um ensino/aprendizagem que reconheça os contextos multilingues. A língua materna influencia a forma como pensamos e processamos a informação pelo que pode contribuir para o desenvolvimento do pensamento crítico e da expressão individual. É também uma forma de empoderamento, o que não contradiz a necessidade de aprendermos várias línguas e através delas acedermos a diferentes visões do mundo.
A Internet pode ser um importante meio de salvaguarda das línguas maternas, não só porque permite uma comunicação de proximidade (nas redes sociais, tendemos a utilizar as línguas que melhor dominamos e nos são mais familiares), como por disponibilizar ferramentas educativas para aprendizagem de línguas e em línguas maternas. Neste dia, a OEI lança o Relatório sobre Línguas Indígenas no Mundo Digital, em que se apresenta um inventário do que foi possível identificar, mas também assinala carências. O levantamento identifica 5500 recursos linguísticos digitais para as línguas indígenas ibero-americanas, número muito baixo para os cerca de 800 diferentes idiomas, assinalando a grande disparidade entre países e línguas.
A presença das línguas no espaço digital, e consequente repercussão na Inteligência Artificial, decidirá o futuro das línguas e a matriz de pensamento que as conformará. Trata-se de uma tarefa que não pode ser levada a cabo de forma individual, grupal ou até nacional. O multilinguismo não é um motivo decorativo, mas uma forma de preservar a diversidade de pensamento, a capacidade criativa e até o diálogo com as máquinas. As políticas linguísticas são, pois, um território de todos nós porque dele depende o lugar que alcançaremos no mundo.
A Internet pode ser um importante meio de salvaguarda das línguas maternas, não só porque permite uma comunicação de proximidade, como por disponibilizar ferramentas educativas para aprendizagem de línguas e em línguas maternas.”