Diário de Notícias

A cultura da inveja

- Filipe Gil Editor do Diário de Notícias

Quanto mais culto for um povo, mais inteligent­e e mais exigente é nas escolhas que faz. Um cidadão com cultura consegue discernir entre políticos com ideias e políticos idiotas.

Àminha frente estava uma fila com cerca de quinze pessoas. Nas cinco caixas de pagamento, empregadas despachava­m os clientes a grande velocidade e com muita parcimónia na simpatia. Ao lado, um segurança aconselhav­a os mais afoitos a pagarem nas caixas self service enquanto convidava os clientes já aviados a desimpedir a saída – que também era entrada. E ali no meio eu, a invejá-los, verdadeira­mente.

A cena passou-se há pouco mais de um ano, numa tarde de um daqueles dias de inverno de pouca luz. O local onde fui assolado por aquele sentimento mesquinho não era um supermerca­do mas sim uma livraria, a Gibert Joseph, na Boulevard Saint Michel, em Paris. Apesar das visitas frequentes à cidade, foi a primeira vez que entrei naquela loja com vários pisos, cinco ou seis, não me recordo. Todos com estantes repletas de livros: dos lançamento­s mais recentes, às reedições e edições especiais com capas luxuosas de clássicos. E num dos pisos, várias estantes cheias de livros de bolso, novos e usados, que permitem que a grande maioria dos franceses – ou leitores de francês – tenham acesso a livros por preços que vão dos 6 aos 14 euros. Uma verdadeira democratiz­ação da leitura. Apesar de conseguir ler francês, o tempo que levo a terminar um livro aborrece-me. Mesmo assim comprei dois, para ter o sentimento de pertença àquela horda de gente que lê e gosta de comprar livros.

Lembrei-me disto esta semana quando visitei várias livrarias em Lisboa. Da “lista de compras” percebi que nenhum era mais barato que 18 euros – e alguns deles editados há mais de dez anos. E a tal inveja voltou a surgir.

E relembrei outro momento numa entrevista que fiz para o DN a uma responsáve­l pela FNAC em Portugal que confirmou a diferença que existe entre os dois países. Disse-me que, em média, um leitor assíduo português lê 14 livros por ano, enquanto em França um heavy reader lê mais do dobro disso. Serão os franceses mais cultos do que os portuguese­s? Duvido, sinceramen­te. Mas que, no geral, dão mais importânci­a à cultura, isso é certo. E nisso continuo a invejá-los. Não perfidamen­te – cada país com os seus problemas – mas com pena que algo assim não aconteça em Portugal. Deu-se o caso de, à saída da livraria lisboeta e de mãos vazias, ter consultado as redes sociais e ver várias stories a indicar que na maratona de debates entre os candidatos dos vários partidos às eleições legislativ­as não tenham existido nem perguntas, nem respostas sobre a cultura. O que não foi verdade. Alguns partidos, poucos, abordaram o tema, mas nem do PS nem do PSD (de onde provavelme­nte sairá o próximo primeiro-ministro) se ouviu uma palavra. Não me admirei. É a economia, estúpido! Sim, claro. A economia é o zeitgeist da política e tudo o resto passa para segundo plano. Mas não devia.

A Europa mais evoluída culturalme­nte tem exemplos de sobra. E regresso a França. Desde 1982 que todos os anos, a 21 de junho, se celebra a Festa da Música, uma ideia lançada no “reinado” de um dos mais importante­s ministros da Cultura de um país Europeu do século XX, Jack Lang. Escolhido o dia mais longo do hemisfério norte, o solstício de verão, a música está na rua, em bares, em restaurant­es, nos transporte­s, em salas de concerto, com milhares de eventos a acontecere­m nesse dia pelo país. É uma festa democrátic­a e plural de todos para todos, amadores, profission­ais, executante­s. E cujo conceito já foi exportado para outros países.

Por cá, o cenário é outro, estamos a melhorar mas continua a ser ridículo que, 50 anos depois do 25 de Abril, ainda não se atribua 1% do Orçamento do Estado à Cultura. Continua a ser difícil romper a bolha elitista que ainda existe. E continua a pairar na sociedade, e sobretudo na classe média, que certas disciplina­s, chamadas eruditas, são apenas para alguns. O que é errado.

Quanto mais culto for um povo, mais inteligent­e e mais exigente é nas escolhas que faz. Um cidadão com cultura consegue discernir entre políticos com ideias e políticos idiotas. Apostar na massificaç­ão da cultura é um investimen­to incomensur­ável, com efeitos práticos em poucos anos. Um país que leia, que conheça música (nas mais variadas vertentes) e saiba tocar instrument­os é um povo mais inteligent­e e, sobretudo, exigente e astuto. Os políticos sérios só podem querer isso. Mesmo assim, e sabendo tudo isto, continuam a fazer-nos crer que é normal contar tostões para comprar um ou dois livros por mês. Aumentando este sentimento que é a inveja da realidade dos outros, um verdadeiro desporto nacional.

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