A cultura da inveja
Quanto mais culto for um povo, mais inteligente e mais exigente é nas escolhas que faz. Um cidadão com cultura consegue discernir entre políticos com ideias e políticos idiotas.
Àminha frente estava uma fila com cerca de quinze pessoas. Nas cinco caixas de pagamento, empregadas despachavam os clientes a grande velocidade e com muita parcimónia na simpatia. Ao lado, um segurança aconselhava os mais afoitos a pagarem nas caixas self service enquanto convidava os clientes já aviados a desimpedir a saída – que também era entrada. E ali no meio eu, a invejá-los, verdadeiramente.
A cena passou-se há pouco mais de um ano, numa tarde de um daqueles dias de inverno de pouca luz. O local onde fui assolado por aquele sentimento mesquinho não era um supermercado mas sim uma livraria, a Gibert Joseph, na Boulevard Saint Michel, em Paris. Apesar das visitas frequentes à cidade, foi a primeira vez que entrei naquela loja com vários pisos, cinco ou seis, não me recordo. Todos com estantes repletas de livros: dos lançamentos mais recentes, às reedições e edições especiais com capas luxuosas de clássicos. E num dos pisos, várias estantes cheias de livros de bolso, novos e usados, que permitem que a grande maioria dos franceses – ou leitores de francês – tenham acesso a livros por preços que vão dos 6 aos 14 euros. Uma verdadeira democratização da leitura. Apesar de conseguir ler francês, o tempo que levo a terminar um livro aborrece-me. Mesmo assim comprei dois, para ter o sentimento de pertença àquela horda de gente que lê e gosta de comprar livros.
Lembrei-me disto esta semana quando visitei várias livrarias em Lisboa. Da “lista de compras” percebi que nenhum era mais barato que 18 euros – e alguns deles editados há mais de dez anos. E a tal inveja voltou a surgir.
E relembrei outro momento numa entrevista que fiz para o DN a uma responsável pela FNAC em Portugal que confirmou a diferença que existe entre os dois países. Disse-me que, em média, um leitor assíduo português lê 14 livros por ano, enquanto em França um heavy reader lê mais do dobro disso. Serão os franceses mais cultos do que os portugueses? Duvido, sinceramente. Mas que, no geral, dão mais importância à cultura, isso é certo. E nisso continuo a invejá-los. Não perfidamente – cada país com os seus problemas – mas com pena que algo assim não aconteça em Portugal. Deu-se o caso de, à saída da livraria lisboeta e de mãos vazias, ter consultado as redes sociais e ver várias stories a indicar que na maratona de debates entre os candidatos dos vários partidos às eleições legislativas não tenham existido nem perguntas, nem respostas sobre a cultura. O que não foi verdade. Alguns partidos, poucos, abordaram o tema, mas nem do PS nem do PSD (de onde provavelmente sairá o próximo primeiro-ministro) se ouviu uma palavra. Não me admirei. É a economia, estúpido! Sim, claro. A economia é o zeitgeist da política e tudo o resto passa para segundo plano. Mas não devia.
A Europa mais evoluída culturalmente tem exemplos de sobra. E regresso a França. Desde 1982 que todos os anos, a 21 de junho, se celebra a Festa da Música, uma ideia lançada no “reinado” de um dos mais importantes ministros da Cultura de um país Europeu do século XX, Jack Lang. Escolhido o dia mais longo do hemisfério norte, o solstício de verão, a música está na rua, em bares, em restaurantes, nos transportes, em salas de concerto, com milhares de eventos a acontecerem nesse dia pelo país. É uma festa democrática e plural de todos para todos, amadores, profissionais, executantes. E cujo conceito já foi exportado para outros países.
Por cá, o cenário é outro, estamos a melhorar mas continua a ser ridículo que, 50 anos depois do 25 de Abril, ainda não se atribua 1% do Orçamento do Estado à Cultura. Continua a ser difícil romper a bolha elitista que ainda existe. E continua a pairar na sociedade, e sobretudo na classe média, que certas disciplinas, chamadas eruditas, são apenas para alguns. O que é errado.
Quanto mais culto for um povo, mais inteligente e mais exigente é nas escolhas que faz. Um cidadão com cultura consegue discernir entre políticos com ideias e políticos idiotas. Apostar na massificação da cultura é um investimento incomensurável, com efeitos práticos em poucos anos. Um país que leia, que conheça música (nas mais variadas vertentes) e saiba tocar instrumentos é um povo mais inteligente e, sobretudo, exigente e astuto. Os políticos sérios só podem querer isso. Mesmo assim, e sabendo tudo isto, continuam a fazer-nos crer que é normal contar tostões para comprar um ou dois livros por mês. Aumentando este sentimento que é a inveja da realidade dos outros, um verdadeiro desporto nacional.