Intimidação e silêncio
Há dois dias, o DN publicava um trabalho de Margarida Davim e Valentina Marcelino sobre o que aconteceu na noite de protestos de polícias à porta do Capitólio, quando Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro tiveram o seu frente a frente. Os relatos do que por lá se passou são elucidativos – comentadores, jornalistas, dirigentes partidários e deputados foram brindados com insultos, tiveram dificuldade em atravessar os protestos para chegar ao edifício, viveu-se uma “sensação de sequestro” e o ambiente era de intimidação.
Os protestos dos polícias têm vindo a acompanhar os dias de pré-campanha num crescendo de animosidade e com declarações inaceitáveis de dirigentes sindicais. Por muito que agenda mediática não pare de rolar, não devemos esquecer a sequência de eventos perdidos na espuma dos dias. Porque essas ações de intimidação e palavras de ameaça parecem ter um propósito claro: criar uma sensação de desordem e insegurança, não para fazer valer as reivindicações salariais, mas para desgastar o PS e promover a extrema-direita.
Quero ser clara. Primeiro, estou entre aqueles que não veem razões para que os polícias não tenham direito à greve. São trabalhadores, não determinam as suas remunerações, estão sujeitos a uma hierarquia e têm por isso direito a ter instrumentos de luta laboral – tal como as outras classes profissionais – devidamente regulamentados de forma a assegurar serviços mínimos, de acordo com a especificidade da função. Mais: esse direito salvava-nos, a nós e aos próprios polícias, do lamentável fingimento de uma súbita onda de baixas médicas.
Segundo, creio que os agentes da PSP têm toda a razão nas suas reivindicações de valorização salarial de uma tabela que é particularmente penosa para os agentes mais novos, presos numa armadilha entre os salários baixos e os custos da habitação das suas colocações profissionais, que são hoje muitíssimo mais elevados do eram para gerações anteriores. Se é certo que as carreiras dos vários corpos das forças de segurança são diferentes, a desigualdade criada pelo subsídio atribuído à Polícia Judiciária gerou uma indignação que me parece totalmente justificada. O défice dos governos de António Costa é este – os brilharetes orçamentais e na dívida foram pagos por quem cumpre funções públicas, dos professores aos polícias, dos médicos aos funcionário judiciais. São quinze anos de desrespeito e mal viver. Os custos dessa política sentem-se hoje nos serviços públicos e no ambiente político do país.
Mas creio que é precisamente por ser tão óbvia essa injustiça que os vários partidos assumiram já o compromisso de negociar essa valorização salarial no pós-10 de março, quando houver um novo quadro de governação, seja qual for o primeiro-ministro.
À primeira vista, o protesto dos polícias atingiu o seu objetivo. Mas então vale a pena perguntar: o que pretendiam os agentes que se juntaram frente ao Capitólio na segunda-feira? O que significa numa democracia ter agentes que assumem a autoridade do Estado a insultar comentadores e a intimidar deputados? Qual é a estratégia de uma luta laboral em que alguns dirigentes sindicais “avisam” o país que pode haver um boicote por parte da PSP no dia 10 de março que coloque em causa a escolha democrática dos portugueses? Mesmo que Ventura tenha vindo dizer que não vai haver boicote às eleições, implicitamente quis mostrar que na polícia manda ele… O que significa esta sucessão de ameaças e clima intimidatório no contexto de um movimento de extrema-direita com uma estratégia deliberada de infiltração nas forças de segurança?
Há algo malsão a agitar-se no horizonte. O Governo abriu inquéritos ao que aconteceu. Fez bem, não sei se será o suficiente. Pedro Nuno Santos foi contundente nas críticas, e também creio que fez bem. Já Montenegro capitulou nessa mesma noite, frente a 2,8 milhões de portugueses, não sei se por achar que pode capitalizar em votos a sensação de desordem (ainda) sob o mandato de um Governo socialista, ou por nem se aperceber verdadeiramente do que está em causa. Finalmente, o responsável pelo “regular funcionamento das instituições democráticas” ficou em silêncio perante os protestos no Capitólio. Quase por ironia, nunca foi tão importante e urgente que Marcelo de Rebelo de Sousa fale sobre o crescendo de intimidação. É precisamente por ser um PR de tradição tão palavrosa que o seu silêncio é talvez o dado mais preocupante no atual contexto.
Porque a questão é simples: parece haver uma estratégia deliberada de criar na opinião pública uma sensação de desordem e de existência de caos nas instituições que possa ter efeitos no momento eleitoral. No passado, esses momentos foram sempre uma armadilha que se justifica e abre caminho para formas de atuação mais “musculadas” e autoritárias. Não pode haver silêncios. Se os houver, serão cúmplices.