Estranhos frutos
Sempre que se noticia um caso de discriminação racial ou de violência sobre trabalhadores estrangeiros, aparecem uns tantos a negar que haja racismo e pessoas que são tratadas como se não fossem gente.
Essa miopia é fácil de explicar e não se verifica só em relação ao racismo. Defendia o ex-funcionário do departamento de Estado dos EUA Robert Keagan que em matéria de defesa os europeus são de Vénus e os norte-americanos de Marte. Justificava esta diferença a ver o real, citando o psicólogo Abraham Maslow, dizendo, entre outras coisas, que as pessoas que têm um grande martelo tendem a pensar que todos os problemas são pregos. Uma superpotência tenderá a lidar com o que se lhe defronta no quadro das suas vantagens.
Quem tem poder nesta sociedade tenderá a tornar invisível a situação de injustiça dos que são explorados, colocados fora da cidadania e da democracia. Com o racismo acontece a mesma coisa: aqueles que beneficiam dele tendem a não ver a situação de desigualdade gritante que existe na sociedade. Naturalizam-na, negando-a.
Só é possível criar uma sociedade melhor emancipando aqueles que criam grande parte da riqueza e vivem pior. Essa alteração estrutural exige uma mudança de representação política, poder e rendimento.
A pensadora norte-americana Jodi Dean usa um episódio do livro Communists in Harlem During the Depression para discutir a ideia de que há um racismo estrutural que apaga os seus próprios traços, mesmo na consciência daqueles que pensam combatê-lo diariamente.
Em 1931, três trabalhadores negros entraram num baile organizado pelo clube finlandês no Harlem. Foram admitidos com visível relutância. Mas, dado a hostilidade crescente dos presentes, foram forçados a sair. Yokinen era um dos vários comunistas presentes que nada fizeram para impedir esse desfecho. O Partido Comunista dos Estados Unidos acusou estes trabalhadores migrantes finlandeses e comunistas de traírem os princípios do partido. Todos aceitaram a sua culpa menos Yokinen, que afirmou que não queria que eles pudessem ir à piscina porque “não desejava tomar banho de piscina ao lado dos negros.”
Para resolver este caso, os comunistas norte-americanos organizaram um gigantesco tribunal partidário no bairro negro do Harlem. O trabalhador e militante comunista finlandês August Yokinen foi formalmente acusado de “preconceito racial, de defender a superioridade branca e de ter feito declarações prejudiciais à classe operária”. Cerca de 1500 trabalhadores negros e brancos participaram nesse julgamento, que se realizou no Harlem Casino, um dos maiores auditórios do bairro negro de Nova Iorque.
O papel de acusador no processo partidário foi tomado pelo editor branco do jornal do partido, Clarence Harthaway, e o papel de defender o militante comunista finlandês foi exercido por um dos melhores oradores negros do Partido Comunista dos Estados Unidos da América, Richard B. Moore.
Estavam em cima da mesa a sentença de expulsão do partido ou apenas a suspensão da militância até serem cumpridas uma série de tarefas antirracistas.
A acusação enfatizou a “traição” feita à classe operária pelo acusado. É certo que ele “não tinha criado o racismo da sua cabeça”, mas estava convertido numa espécie de “megafone do capitalismo” ao colaborar para dividir a classe operária entre brancos e negros.
A defesa do operário finlandês sublinhou o caráter estrutural do racismo. O que Moore defendia não é queYokinen não fosse culpado. Afirmava é que ninguém se podia considerar inocente neste caso. “Cada aspeto do imperialismo capitalista dissemina a ideologia corrupta da superioridade branca.” Moore dirigiu ainda a crítica ao próprio partido, considerando que o partido não tinha feito o seu trabalho educativo para extirpar o racismo das suas fileiras. E defendeu que a autocrítica, e não a expulsão, era a melhor pena.
O tribunal decidiu, com a aceitação de Yokinen, que este escreveria uma carta a condenar as suas atitudes racistas e que passaria a trabalhar na frente antirracista do partido.
Tal não veio a acontecer, porque o FBI decidiu expulsar o trabalhador finlandês para a Finlândia, por ser subversivo, comunista e ... antirracista. No dia seguinte ao julgamento, Yokinen foi preso e detido para deportação. As autoridades norte-americanas estavam disponíveis para aceitar um operário finlandês nas ruas dos EUA desde que ele, pelo menos, participasse no movimento racista para dividir os trabalhadores. Ser antirracista era demasiado para a polícia norte-americana.
A ideia de raças é produto do racismo, e não é o racismo que é produto das raças. Qualquer luta para emancipar quem trabalha tem de ser antirracista, ou não é. E, também, não há afirmação antirracista que não se faça no quadro de dar maior poder a quem trabalha.
A ideia de raças é produto do racismo, e não é o racismo que é produto das raças. Qualquer luta para emancipar quem trabalha tem de ser antirracista, ou não é. Não há afirmação antirracista que não se faça no quadro de dar maior poder a quem trabalha.