Shogun: o drama histórico quer-se grande
Mais de 40 anos depois da minissérie de sucesso adaptada do best-seller de James Clavell, um novo Shogun chega esta terça-feira ao Disney+. Uma versão levemente modernizada, com forte elenco japonês, um britânico a precisar de tradutora e um ator português pelo meio. Saudemos a tradição dos épicos televisivos.
Ano de 1600, Japão. Um barco europeu é encontrado numa aldeia piscatória perto de Osaca. Minutos antes, ouvimos o seu capitão inglês, John Blackthorne, protestante, a identificar os católicos portugueses como inimigos: padres jesuítas e comerciantes que, segundo ele, passam a perna aos japoneses, fazendo-os acreditar que na Europa apenas se fala a língua de Camões. Um indivíduo com sangue na guelra e espírito de sobrevivência, mas talvez um pouco menos preparado para se envolver num princípio de guerra civil: ali ao lado, a morte do governador supremo do Japão, que deixou um herdeiro demasiado jovem para assumir o poder, leva ao estabelecimento de um Conselho de Regentes, que deve comandar o país até que o verdadeiro sucessor atinja a maioridade. Onde é que entra Blackthorne? Na parte em que um dos regentes se incompatibiliza com os outros quatro, tornando-se uma força independente e intimidante, que verá nesse agitado inglês um recurso valioso, tanto pelos seus conhecimentos de guerra náutica como pela exasperação face à presença portuguesa.
Este é só o ponto de partida de Shogun, uma nova adaptação do romance homónimo de James Clavell, que em 1980 (cinco anos após o lançamento do livro) fez brilhar no pequeno ecrã Richard Chamberlain, como John Blackthorne, e o gigante ator de Kurosawa, Toshiro Mifune, na pele do regente Yoshii Toranaga, através da popular minissérie da NBC. Agora, o capitão europeu é interpretado pelo jovem Cosmo Jarvis eo lord japonês por um dos rostos mais reconhecíveis da ação com espada (vimo-lo, inclusive, no último John Wick), Hiroyuki Sanada. A estes dois junta-se, em termos de protagonismo, Anna Sawai, a atriz neozelandesa, descendente de japoneses, que oferece serenidade e elegância a Mariko, a tradutora do “português” de Blackthorne (pede-se aqui a suspensão da descrença), com quem ele trocará mais do que palavras...
Numa mesa-redonda virtual com Cosmo Jarvis e Anna Sawai, em que o DN participou, as palavras foram, porém, suficientes para transmitir os sentimentos à volta de uma série de linguagem épica, como se querem os bons dramas históricos, neste caso com a verve dos samurais e a solenidade doméstica da cultura japonesa. Ainda assim, não estamos perante um simples remake para picar o ponto, como nota a atriz: “Tenho a sensação de que o romance de Clavell apresentou o Japão ao mundo, e, claro, a minissérie [original] foi toda uma cena! Mas, enquanto japonesa, penso que esta nova série traz mais autenticidade e precisão ao material. Também, enquanto espectadora japonesa, não sinto que a nossa cultura esteja a ser retratada de uma forma pouco verdadeira. Ou seja, houve uma evolução entre as três coisas: o livro, a primeira minissérie e a nova produção.”
Este sublinhar do aspeto da autenticidade é, aliás, algo indissociável do facto de a série ter como produtor o seu maior intérprete, Hiroyuki Sanada, que “substitui” a lenda Toshiro Mifune carregando uma aura semelhante. Como foi trabalhar com um ator tão imponente na tela? “Eu nunca tinha feito um drama de época”, começa por dizer Anna Sawai. “E, sendo ele tão conhecido por interpretar samurais, confesso que tive receio que fosse muito rígido... Surpreendentemente, foi tão gentil, caloroso e recetivo – sempre pronto para me responder de dez maneiras diferentes a uma simples pergunta –, que senti ter aprendido muito a partir do seu exemplo. Para ser honesta, não sei como teria assumido o meu papel sem a ajuda dele.” Um testemunho não muito diferente do de Cosmo Jarvis: “Ele fixou um exemplo muito claro de como partilhar a paixão e o entusiasmo por um projeto e tê-lo por perto tornou a dinâmica de tudo autoexplicativa: como se nos sentíssemos impelidos a fazer um bom trabalho para honrar a sua atenção a todos os detalhes. Foi muito estimulante para toda a gente.”
Os 10 episódios que vão chegar em breve ao Disney+ (no dia 27 ficam disponíveis os dois primeiros) convidam à imersão numa intriga que tem tanto de heroico e robusto como de íntimo e silencioso. E é nesses pontos distintos da experiência criada por Rachel Kondo e Justin Marks que os atores identificaram o desafio específico de fazer parte de uma produção desta natureza.
Para Jarvis, o essencial era “aceder ao mecanismo da história, no seu contexto grandioso e com temas muito arquétipos, de maneira a torná-la também microscópica, tangível e individual do ponto de vista da personagem”. Já Sawai ficou presa a uma corrente mais profunda da mulher japonesa que encarna: “Houve uma parte muito física, mas mentalmente foi mais pesado. Perto do final da rodagem, lembro-me de tentar separar-me da pele da Mariko, de querer divertir-me aos fins de semana, mas, ao mesmo tempo, não me apetecer ver ninguém. É como se ela, de alguma forma, vivesse dentro de mim e tivéssemos o mesmo tipo de pesadelos. Ou melhor, como se ela tivesse substituído o meu corpo! [risos] Libertar-me disso foi a parte mais difícil.”
Se a série original não tinha um único ator português no elenco, apesar das várias personagens portuguesas, pelo menos desta vez temos Joaquim de Almeida a dar um importante contributo ao segundo episódio, enquanto padre Domingo, uma personagem boa, que se encontra com John Blackthorne atrás das grades e lhe oferece uma visão geral do que se passa em terras japonesas feudais – ao mesmo tempo que reza por ele. O DN perguntou a Jarvis como se deram os dois nessa extensa partilha de ecrã, e a resposta risonha foi esta: “O padre Domingo? Foi excelente! Trata-se de um ator incrivelmente calejado. E passámos os dois imenso tempo dentro da cela... É uma daquelas cenas em que tens de estar mesmo ali com a pessoa – mas foi muito natural, a dinâmica correu na perfeição. Por isso, sim, demo-nos muito bem.”