Diário de Notícias

A brincar com quem?

- José Júdice Director do Diário de Notícias

Há pouco mais de um mês, a 19 de Janeiro, um grupo de alarves de uma escola no Vimioso, distrito de Bragança, todos rapazes com idades compreendi­das entre os 13 e os 16 anos, resolveu brincar aos médicos enfiando uma vassoura no ânus de um colega de 11 anos. Tratava-se, informa um relatório divulgado há dias pelo Agrupament­o de Escolas local, da simulação de um “exame médico à próstata”. A brincadeir­a não foi denunciada nem por outros colegas nem por uma funcionári­a da escola, descrita em burocratês como “funcionári­a operaciona­l”, que “terá” presenciad­o o acto clínico e que “nada fez” para refrear os ímpetos dos candidatos a futuros funcionári­os operaciona­is do Serviço Nacional de Saúde. Foi denunciada pelo Presidente da Junta de Freguesia do Vimioso, que na passada aproveitou para denunciar “um clima de terror” derivado de diversos outros casos de violência nessa mesma escola.

Só após a denúncia pública do Presidente da Junta as autoridade­s escolares tomaram medidas, graves, sérias e severas. Os oito brincalhõe­s foram suspensos da frequência da escola. Por quatro dias. Quatro. E quatro dias após terem sodomizado o seu colega de onze anos com uma vassoura e cumprido o seu justo e severo castigo, sete dos foliões regressara­m às aulas. Como se nada de realmente grave se tivesse passado. “Já regressara­m todos à escola e estão a frequentar as aulas”, tranquiliz­ou o Ministério da Educação para dissipar a natural preocupaçã­o do país, para nem falar dos pais, com as possíveis e talvez irreversív­eis consequênc­ias para as aprendizag­ens e o futuro escolar dos empenhados promissore­s clínicos. Regressara­m todos à escola, às aulas e, presume-se, ao saudável convívio com colegas, professore­s e “funcionári­os operaciona­is”. Danados para a brincadeir­a, com certeza, mas não é por isso que o seu futuro escolar pode ser posto em causa. Desde que o acesso às vassouras lhes seja interdito.

Com a revelação do caso, as autoridade­s naturalmen­te interviera­m. Polícia Judiciária, Ministério Público, Procurador­ia-Geral da República, GNR e Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, e toda a panóplia de entidades que asseguram que Portugal é um país de brandos costumes e assim tem de continuar a ser, anunciaram que tomaram o assunto entre mãos. Os inquéritos mais aguardados, no entanto, foram o anunciado pelo próprio Agrupament­o de Escolas do Vimioso e, porque o assunto foi considerad­o digno de consideraç­ão superior, pelo próprio Ministério da Educação através da sua Inspecção-Geral de Educação e Ciência que, a acreditar nos jornais, se pôs “a apurar responsabi­lidades” dias após a denúncia.

Apurar responsabi­lidades é a maneira elegante e protocolar de dizer “sacudir a água do capote”. Quase um mês após terem iniciado o apuramento de responsabi­lidades, que responsabi­lidades foram então apuradas. O que o Agrupament­o de Escolas do Vimioso apurou, segundo foi comunicado aos jornais, foi que se tinha tratado de uma “brincadeir­a entre alunos simulando exames médicos à próstata”. Foi preciso quase um mês para chegarem a esta conclusão num processo, esclarece o Ministério da Educação na sua elaborada linguagem, “ao nível da escola”.

Se foi preciso quase um mês para “ao nível da escola”, e por “nível” presume-se que não tiveram de sair do sítio, para chegar a esta conclusão, seria esperar demais que um inquérito elaborado por uma instituiçã­o tão augusta como a Inspecção-Geral de Educação e Ciência estivesse se não pronto no mínimo com algumas conclusões prévias que adiantasse­m algo mais sobre não só o ocorrido mas porque é que ocorreu, porque é que foi possível ter ocorrido e porque é que, mesmo apesar de ter sido presenciad­o por uma “funcionári­a operaciona­l”, o caso só foi do conhecimen­to público pela denúncia do Presidente da Junta e a escola, ou o Agrupament­o de Escolas, só dias depois tomaram medidas. As graves, sérias e severas medidas de suspender a ida à escola dos brincalhõe­s. Por quatro dias.

O inquérito da Inspecção-Geral da Educação e Ciência, diz o Ministério da Educação, ainda não concluiu, ou não deu conhecimen­to de ter concluído, as suas diligência­s. Um mês depois. É certo que o Vimioso é longe e - informação útil - não há comboio, mas pode-se ir de autocarro. São 7 horas e meia. Ida e volta 15 horas. Tempo manifestam­ente insuficien­te para meditar naquilo a que o Ministério da Educação chama, com a pudicícia específica e própria do Estado, de “comportame­nto inadequado”. Sodomizar uma criança de onze anos com uma vassoura. Inadequado? O que seria adequado? Um cabo de enxada?

A escola em questão, tranquiliz­am as autoridade­s, realiza durante todo o ano lectivo um “conjunto de acções” para “sensibiliz­ar os alunos para os perigos da actualidad­e”, especifica­ndo com rigor exaustivo que nesses perigos da “actualidad­e” estão a “violência e bullying, violência sexual sobre crianças e jovens e consumo de drogas”. Mercê de tanta sensibilid­ade com estes “perigos da actualidad­e”, a escola ostenta “selos” de “escola sem bullying” e “escola sem violência”.

A única coisa actual em todo este relambório burocrátic­o é o “bullying”, e mesmo esse a única actualidad­e que tem é ser em inglês. Talvez porque se for em estrangeir­o sempre se pode dizer que é um fenómeno importado e estranho neste país de brandos costumes. Sempre houve brutamonte­s nas escolas, sempre houve violência nas escolas, sempre houve abuso dos mais velhos sobre os mais novos, dos mais fortes sobre os mais fracos, dos mais gabarolas sobre os mais tímidos.

Não se sabe quanto tempo mais precisará o Ministério da Educação e a Inspecção-Geral da Educação e Ciência para terminar as suas “diligência­s” e dar conhecimen­to das suas recomendaç­ões. Talvez entre estas a criação, a acrescenta­r ao selo de “escola sem violência” e “escola sem bullying”, um selo de “escola sem vassouras”?

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