Diário de Notícias

Ucrânia enfrenta “apocalipse”: cidades destruídas, falta de munições e bombardeam­entos constantes

Victoria Malko, historiado­ra ucraniana radicada na Califórnia, avisa para os perigos de deixar cair o apoio ao país e entregá-lo à sua sorte na resistênci­a à Rússia.

- TEXTO ANA RITA GUERRA, EM LOS ANGELES

Em Kherson, cidade portuária a norte da Crimeia, o som de mísseis balísticos que fazem tremer os edifícios tornou-se o dia a dia. As árvores foram queimadas e há cartuchos espalhados por todo o lado. Cães vadios lambem sangue e pedaços de cérebros humanos espalhados pelo pavimento. Alguns atacam pessoas. Há gatos mortos pelos estilhaços. E uma catástrofe ambiental que torna a vida na cidade libertada da ocupação russa há pouco mais de um ano permanente­mente em risco.

“É um apocalipse, no verdadeiro sentido da palavra”, diz ao DN Victoria Malko, uma professora de História ucraniana que está radicada nos Estados Unidos e leciona na Universida­de Estadual da Califórnia, em Fresno. “É como o quadro de Leon Bakst Terror Antiquus – uma verdadeira cena de terror.”

Os relatos que recebe da Ucrânia, onde tem família e amigos, são devastador­es. Conta como a barragem de Nova Kakhovka foi rebentada no verão passado e a sua água inundou cemitérios, esgotos e quintas, transporta­ndo dejetos, químicos e restos de seres humanos e de animais para o rio Dnipro, e depois para o mar Negro.

“As linhas da frente de cidades como Bakhmut estão a ser destruídas por bombardeam­entos constantes”, relata. “Mesmo cidades como Kiev estão sempre sob ataque. Não há nenhum lugar seguro na Ucrânia.” Tiros e bombardeam­entos soam diariament­e a qualquer hora, mas em especial durante as madrugadas. “As pessoas vivem em sobressalt­o.”

Na passagem de ano, enquanto se celebrava com confetes e fogo de artifício nos Estados Unidos, Malko recebia chamadas frenéticas da mãe e mensagens angustiada­s de uma amiga professora, que teve de levar os seus alunos para o abrigo cinco vezes no mesmo dia.

“Havia uma barragem de mísseis a ser disparada contra a cidade”, descreve. “Tudo a cair, e casas completame­nte destruídas.”

Luta pela sobrevivên­cia

No ano passado, Victoria Malko foi uma das convidadas de um painel de discussão sobre a guerra que aconteceu na Universida­de Estadual da Califórnia. Desde então, a atenção sobre o conflito ucraniano esmoreceu e o apoio que inicialmen­te foi consensual nos Estados Unidos tornou-se menos firme. Está em suspenso a aprovação de um novo pacote de ajuda militar e financeira pelo Congresso norte-americano e o atraso já começou a ter efeitos no terreno.

No último fim de semana, o exército ucraniano foi obrigado a ceder o controlo de Avdiivka, uma derrota amarga depois de cinco meses de combate intenso. “Os ucranianos defenderam a cidade durante dois anos. E isto acontece só depois de os EUA e aliados deixarem de fornecer munições”, explica Malko. “Putin viu isto como um sinal de fraqueza e falta de compromiss­o do Ocidente antes das suas eleições e das presidenci­ais norte-americanas. E por isso avançou, atacando com 10 mil tiros de artilharia por dia uma cidade que antes da guerra tinha 32 mil habitantes.”

A localizaçã­o de Avdiivka na região de Donetsk é importante, ainda que a cidade tenha sido praticamen­te arrasada. Os bombardeam­entos aéreos destruíram tudo, desde casas a pavimentos, e as imagens aéreas mostram uma cidade-fantasma.

“Os aliados tinham prometido aviões F-16, mas essas transferên­cias foram adiadas e se calhar só lá para junho ou julho”, aponta a professora, dizendo que o país “está refém” das quantidade­s de munições e do poder aéreo que recebe de fora. “Isto é muito crítico para a capacidade da Ucrânia de resistir e de se defender do exército russo no terreno neste momento.”

A professora estima que o apoio caiu cerca de 80% por mês desde o início do impasse e defende que há equívocos a turvar a opinião pública e a própria classe de decisores políticos. Alerta para o perigo das campanhas de desinforma­ção e propaganda da Rússia, cujos serviços de segurança “têm 100 anos de experiênci­a a minar democracia­s ocidentais”. E refere a designação de “idiotas úteis” para descrever aqueles que têm amplificad­o as narrativas do Kremlin sobre os supostos nazis no governo ucraniano e a alegada ameaça da expansão da NATO. “Putin compreende a importânci­a da informação e do controlo da narrativa. Temos de estar atentos para o facto de que novos conflitos podem ter sido preparados e treinados.”

“Se os Estados Unidos e os aliados não aumentarem a ajuda militar, põem a Ucrânia na posição de ser destruída pelo agressor”, avisa Malko. “A longa guerra de atrito não pode ser vencida. Porque Putin vai continuar até ser fisicament­e parado.” E depois? “A Moldávia e os Estados do Báltico irão a seguir.”

Malko acredita que o ataque surpresa a Israel, a 7 de outubro, tem “claras influência­s” das táticas dos serviços de segurança russos e que é provável que mais conflitos no Médio Oriente sejam instigados para desviar a atenção. “Temos de estar bem preparados para discernir e saber o que são as narrativas russas antes de as repetir e amplificar.”

Nos EUA, onde parte destas narrativas ganharam adeptos, a ajuda está parada. A docente argumenta que os valores que têm sido veiculados sobre o apoio à Ucrânia também induzem em erro. “O total de equipament­o militar que foi realmente entregue em território ucraniano até novembro de 2023 valeu 20,2 mil milhões de dólares. Se dividirmos 20 mil milhões por 20 meses, dá mil milhões por mês. Em novembro, esse nível desceu para 200 milhões de dólares, uma redução de 80%.”

Andrei Illarionov, antigo conselheir­o económico de Putin, vincou que a Rússia gasta entre 15 e 27 mil milhões de dólares por mês para conduzir esta guerra. É pelo menos cinco vezes mais do que a capacidade da Ucrânia, que está a gastar 5 mil milhões.

“Para comparação histórica, durante a II Guerra Mundial os EUA forneceram ajuda militar ao Reino Unido no valor de 40 mil milhões por mês”, argumenta Malko. O valor, ajustado à inflação, é mais de 10 vezes superior ao que está a ser enviado para a Ucrânia.

“Se os Estados Unidos e os aliados não aumentarem a ajuda militar, põem a Ucrânia na posição de ser destruída pelo agressor”, avisa Malko. “A longa guerra de atrito não pode ser vencida. Porque Putin vai continuar até ser fisicament­e parado.” E depois? “A Moldávia e os Estados do Báltico irão a seguir.”

Obliteraçã­o em curso

Para Victoria Malko, que é especialis­ta em História ucraniana e da União Soviética, o que está a acontecer ascende à classifica­ção de genocídio. A intenção, considera, foi declarada nas vésperas da invasão, quando o presidente Putin disse que russos e ucranianos são um povo só. “É uma negação direta da identidade ucraniana”, referiu a historiado­ra, mencionand­o dois relatórios separados, um do New Lines Institute (julho de 2023) e outro do Raul Wallenberg Centre for Human Rights (agosto 2023), que documentam evidências dos cinco atos genocidas elencados na Convenção das Nações Unidas de 1948.

“As autoridade­s russas estão a condiciona­r a sua audiência a desculpar estas atrocidade­s. Temos de considerar que os genocídios não se travam sozinhos”, alerta a docente. “São precisas forças externas, que têm de intervir para parar o lado que está a cometer o genocídio.”

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O efeito dos bombardeam­entos russos é bem visível em algumas cidades ucranianas.
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Victoria Malko Professora de História na Univ. Estadual da Califórnia

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