Opinião Fernanda Câncio
a tradicional distinção entre esquerda e direita no tratamento dos direitos das primeiras.
No seu artigo no FT, Burn-Murdoch aventa que o movimento #metoo terá sido o “gatilho” determinante para este fosso, ao promover valores feministas entre as jovens e encorajando-as a falar contra as injustiças de que se sentem alvo: “A clara divisão entre progressistas e conservadores no que respeita ao assédio sexual parece ter causado – ou é pelo menos parte de – um realinhamento mais vasto de jovens mulheres e homens para, respetivamente, os campos liberais e conservadores em outros assuntos.”
É o caso, pelo menos nos EUA, Reino Unido e Alemanha quanto às opiniões sobre imigração e questões raciais, diz o jornalista, que chama a atenção também para o facto de este tipo de divisão poder ser exacerbada pelos “universos” separados que a internet e as redes sociais permitem criar para mulheres e homens.
Havendo uma clara alteração na forma como as mulheres e sobretudo as raparigas portuguesas veem o feminismo e a luta pelos seus direitos (são decerto hoje muitíssimo mais vocais e conscientes nessa matéria do que há dez anos, quando se começou a debater o assédio sexual nas redes sociais); sendo óbvio que a “onda” de extrema-direita que assola a Europa é inimiga dos direitos das mulheres; e que existe a dita tendência para a divisão de sentido de voto em função do género, esperar-se-ia que o tema fosse “puxado” pelos jornalistas nos debates televisivos que opuseram os líderes partidários.
E não se diga que não há assunto. Recorde-se que o partido de extrema-direita, além de se portar na Assembleia da República de forma insistentemente misógina, prometeu acabar com a dotação orçamental de 400 milhões de euros para o que apelida de “ideologia de género” – dotação que, como foi de imediato explicado, se refere a medidas de promoção de igualdade entre mulheres e homens, de combate à violência contra mulheres, de apoio à parentalidade, etc – e inscreveu no seu programa o objetivo de acabar com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (que seria “absorvida” por uma “secretaria de Estado da Família”).
Por outro lado, se ficou claro ao longo do ano de 2023, desde logo através da investigação publicada por este jornal, que há problemas graves no acesso à interrupção de gravidez no Serviço Nacional de Saúde, lembre-se que os dois principais partidos – PSD e CDS-PP – que compõem a Aliança Democrática não só se opuseram historicamente à possibilidade de as mulheres poderem interromper a gravidez como utilizaram a sua última maioria absoluta para, no derradeiro dia da legislatura 2011/2015 e com Luís Montenegro como líder parlamentar, alterar a lei no sentido de penalizar as mulheres que pretendam aceder-lhe. Para tal, aboliram o registo de profissionais objetores de consciência no Serviço Nacional de Saúde e a proibição de que estes pudessem participar nas consultas de IG, e obrigaram as mulheres a “apoio psicológico” durante o “período de reflexão”. Alterações prontamente anuladas pela maioria de esquerda que resultou das eleições de 4 de outubro de 2015 e que, lembre-se também, o então presidente da República, Cavaco Silva, recusou promulgar.
Quando nos EUA e Europa – na qual vários países alteraram ou se preparam para alterar as leis sobre interrupção de gravidez no sentido de tornar mais fácil o acesso (Espanha, França, Bélgica) e de consagrar o seu direito nas constituições (França) – o tema dos direitos das mulheres anima o debate político, em Portugal é como se não houvesse nada a discutir ou resolver, nenhuma divisão nesta matéria.
Como se não houvesse, e cada vez mais pelo que se constata, votos feministas e votos machistas. Como se lutar pelas mulheres não implicasse votar como uma mulher.