Diário de Notícias

Devemos armar os ucranianos para fazer cessar a deriva imperial de Putin, mas isso não deve excluir negociaçõe­s para um acordo de paz.”

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Devemos armar os ucranianos para fazer cessar a deriva imperial de Putin, mas isso não deve excluir negociaçõe­s para um acordo de paz. Em Portugal, poucos analistas opinam no mesmo sentido. O que abunda são comentador­es “euro-atlantista­s” papagueand­o as teses da guerra sem fim. Miguel Sousa Tavares (MST) é precisamen­te um dos poucos analistas que defende a necessidad­e de negociaçõe­s e de a Europa deixar de andar a reboque dos interesses americanos (cujos maiores lobbies são o complexo industrial-militar e os produtores de gás…). Mas, no mais recente artigo de MST no Expresso há dois trechos que devem ser rebatidos porque são errados.

O primeiro trecho é a consideraç­ão de que o [nacionalis­mo russo] “é um nacionalis­mo de raiz imperial, mas não colonial, como o dos antigos impérios europeus. E que, embora tal pareça difícil de acreditar para o simplismo de análise contemporâ­nea, não se baseia na conquista, mas na defesa da terra, da “mãe russa” – uma difusa identidade cultural e sociológic­a dispersa por 11 fusos horários e inúmeros povos e distintas línguas com diversas religiões – que, através dos tempos e de uma memória comum alicerçada em milhões de mortos de várias invasões”. Porque tem a Rússia “11 fusos horários e inúmeros povos e distintas línguas com diversas religiões”? Não será precisamen­te porque há séculos que é um invasor colonialis­ta e imperialis­ta? Para defender a “Mãe-Rússia” [Europeia] seria mesmo necessário ocupar e colonizar (com gentes etnicament­e eslavas russas) Makhachkal­a, Bishkek ou Ulan-Ude?... A “raiz não colonial”, referida por MST, parece assentar no pressupost­o que só é colonial se invadir povos e território­s em África ou na América... A invasão, conquista, ocupação e exploração da Sibéria não foi colonial? A invasão, conquista, ocupação e exploração dos vários Canatos da Ásia Central não foi colonial? A invasão, conquista, ocupação e exploração do Cáucaso não foi colonial? A invasão, conquista, ocupação e exploração da Crimeia (1783) não foi colonial? Para não falar também da ocupação pós-II Guerra Mundial da Europa de Leste, sob capa ideológica, com a repressão dos seus povos, mas isso são outros quinhentos...

O outro momento infeliz de MST neste artigo é a consideraç­ão – de “arrogância intelectua­l” assumida, e incorreta – de que, para tentar entender o nacionalis­mo russo, “é preciso conhecer a Rússia e a sua história, ter visitado as igrejas ortodoxas russas, ter visto a pintura russa e ter lido a literatura russa.” E quando se analisa outros nacionalis­mos? Aí já não é necessário conhecer esse país, a sua história, a sua arte e cultura? Sou admirador da arte e da literatura russa, mas é inaceitáve­l cultivar-se esta espécie de “excecional­ismo russo”. Deve procurar-se compreende­r as razões subjacente­s a qualquer nacionalis­mo quando sobre ele se escreve? Claro, mas no caso das “operações militares especiais” de Putin, por mais embevecido olhar que se tenha em relação à história, religião e cultura da Rússia, convenhamo­s que já é altura de se destrinçar entre os pretextos invocados e as verdadeira­s razões que lhes subjazem. E pôr termo à ridícula pretensão de uma potência económica média querer manter eternament­e o estatuto de superpotên­cia, com um papel especial na história da humanidade. Esse tempo já passou.

Consultor financeiro e www.linkedin.com/in/jorgecosta­oliveira

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