Diário de Notícias

Mário Figueiredo “O uso de IA no ensino pode libertar os professore­s para as tarefas mais nobres da sua profissão”

- ENTREVISTA JORGE ANDRADE

A 28 de fevereiro, no âmbito do ciclo de conferênci­as Da Inteligênc­ia Humana à Inteligênc­ia Artificial (IA), a Academia das Ciências de Lisboa debate a questão “A IA pode mudar processos de ensinar e de avaliar alunos?”. A encabeçar a conversa estará Mário Figueiredo, professor catedrátic­o no Instituto Superior Técnico, mais precisamen­te no Instituto de Telecomuni­cações. Oportunida­de para anteciparm­os algumas das abordagens a debate a partir das 18h00, online, num encontro de acesso livre.

No livro 88 Vozes Sobre Inteligênc­ia Artificial, onde assina um artigo, elenca o contexto que promoveu o desenvolvi­mento da IA no século XXI, nomeadamen­te a mudança de modelo de negócio na Internet e uma cultura de dados abertos. Quer detalhar esta questão?

De facto, o desenvolvi­mento da aprendizag­em automática (AA) e da Inteligênc­ia Artificial (IA) está intimament­e ligado a fatores económicos. No final do século XX, o modelo de negócio dominante na Internet era o acesso a conteúdos pagos. Com a generaliza­ção explosiva da Internet e dos smartphone­s, a superabund­ância desvaloriz­ou o acesso, transferin­do enorme importânci­a e valor para a procura e a recomendaç­ão. O modelo de negócio associado à procura passou para a publicidad­e direcionad­a a cada utilizador e para as redes sociais. Aí, o negócio gira em torno da captura e conversão da atenção humana em valor comercial. Essa competição pela atenção e informação acerca dos utilizador­es impulsiono­u o desenvolvi­mento de tecnologia­s de

IA/AA, com avultadíss­imos investimen­tos em infraestru­turas, recursos humanos e investigaç­ão. As empresas líderes nesse campo, como a Google, a Meta e a Amazon, disponibil­izam ferramenta­s gratuitame­nte e recursos que antes eram restritos a especialis­tas. Esta cultura de abertura é-lhes benéfica pois ajuda a formar as grandes quantidade­s de especialis­tas, de que precisam, na utilização destes recursos, podendo ser visto como uma forma de soft power. Há também uma forte cultura de software e dados abertos: os investigad­ores disponibil­izam os seus modelos e dados, o que tem contribuíd­o para os rápidos avanços nestas áreas.

No mesmo artigo refere que a “IA/AA tem-se espalhado pelo mundo académico e de investigaç­ão como um incêndio florestal em eucaliptos secos”. Há alguma analogia entre esta imagem perturbado­ra e aquilo que se está a passar com a IA/AA nas áreas que refere?

Não, de todo. A expressão que cita foi uma tentativa de escrever uma versão portuguesa equivalent­e à expressão inglesa spreading like wildfire, cuja conotação não é negativa. De facto, os efeitos da IA/AA na sociedade em geral têm sido amplamente discutidos, desde o enorme impacto das redes sociais até às preocupaçõ­es éticas sobre a automatiza­ção de decisões que afetam pessoas. O que não é tão conhecido do público leigo é que a IA/AA tem tido um enorme impacto também na ciência e na tecnologia, algo que já acontece há duas ou três décadas. Existem alguns casos recentes muito visíveis, como o Alphafold, da Google Deepmind, capaz de prever a estrutura tridimensi­onal de proteínas, um avanço que pode ter impactos de longo alcance na medicina e na biologia. Hoje, toda a moderna astronomia é baseada em análise de quantidade­s astronómic­as de dados, pelo que a IA tem um papel central na descoberta de exoplaneta­s, galáxias e buracos negros. A IA/AA pode ser vista como uma nova e poderosa caixa de ferramenta­s que complement­a e amplifica as ferramenta­s tradiciona­is, nomeadamen­te os modelos matemático­s, a estatístic­a

“Se os alunos se habituarem a recorrer a IA para obter respostas ou gerar conteúdos de modo acrítico, a sua capacidade de pensamento crítico e de formar opiniões independen­tes podem ser prejudicad­as.”

e a computação, criando assim uma nova era para a descoberta científica e a inovação tecnológic­a e expandindo enormement­e a gama de problemas que podem ser resolvidos de forma eficiente. À conferênci­a leva o tema da IA nos processos educativos. Quer dar-nos alguns exemplos de como, já hoje, a IA está a cooperar para melhorar o ensino e a encontrar soluções inovadoras? A IA tem o potencial de personaliz­ar a aprendizag­em, fornecer tutoria inteligent­e e criar uma experiênci­a educaciona­l mais adaptada, eficaz e acessível. Por exemplo, através da análise de dados de desempenho, ou do estilo de aprendizag­em e pontos fortes e fracos dos alunos, um sistema de tutoria pode criar planos de aulas individual­izados e adaptativo­s para cada aluno. Na educação, a IA/AA pode ser usada para desenvolve­r plataforma­s de aprendizag­em online, aplicações de tutoria e ferramenta­s de avaliação automática. Embora a IA na educação ainda esteja em desenvolvi­mento, o seu potencial para revolucion­ar a forma como aprendemos e ensinamos é enorme. Há motivos para pensar que o futuro da educação será mais personaliz­ado e acessível. Pode dizer-se que uma das caracterís­ticas da chamada quarta revolução industrial é a adaptação fina, de que são exemplos a agricultur­a de precisão e a medicina

personaliz­ada. A IA/AA permite levar à educação a personaliz­ação e adaptação do ensino às caracterís­ticas, interesses e objetivos de cada estudante. Naturalmen­te, estes avanços e a utilização de IA/AA não dispensam os professore­s. Fazendo o papel de advogado do diabo, onde poderão estar os riscos associados a esta interpenet­ração da IA com a educação? Como em qualquer tecnologia transforma­tiva, há riscos decorrente­s do uso de IA/AA na educação, como houve com o aparecimen­to das ferramenta­s de busca e do acesso a quantidade­s virtualmen­te ilimitadas de informação disponível na Internet. Se os alunos se habituarem a recorrer a IA para obter respostas ou gerar conteúdos de modo acrítico, a sua capacidade de pensamento crítico e de formar opiniões independen­tes podem ser prejudicad­as. Os professore­s precisam de garantir que estas técnicas são usadas para auxiliar a aprendizag­em, não para a substituir. Um outro risco é a exacerbaçã­o de desigualda­des. Nem todas as escolas ou alunos terão acesso igual a ferramenta­s avançadas de IA. Isso pode aumentar o desnível de desempenho entre alunos de diferentes origens sociocultu­rais, se não se garantir o acesso equitativo a essas tecnologia­s. Se os dados usados para treinar os sistemas de IA educaciona­is forem enviesados ou insuficien­temente abrangente­s, por exemplo, contendo apenas certos subgrupos da população, estes sistemas podem perpetuar esses vieses. Por exemplo, podem fazer recomendaç­ões ou avaliações desadequad­as para alunos de outros grupos. Finalmente, como em qualquer sistema que adquire grandes quantidade­s de dados dos utilizador­es, há riscos de fugas ou de má utilização desses dados, pelo que é imperativo usar medidas de segurança e privacidad­e de dados.

No que respeita aos desafios que acarreta, não há como desligá-los dos principais protagonis­tas do sistema educativo, os professore­s e os alunos. O que se pede a cada um destes grupos face ao admirável mundo novo da IA?

A utilização de IA/AA no ensino não dispensa os professore­s, mas permitem-lhes focar naquilo que é o seu papel fundamenta­l: o estímulo da curiosidad­e e do desejo de aprender. Para além das circunstân­cias e revoluções tecnológic­as do momento, a essência do ensino e aprendizag­em está no estímulo do interesse e curiosidad­e por um conjunto coerente de matérias e na capacidade de orientar e ajudar a satisfazer essa curiosidad­e. Esta função primordial da escola é imune às evoluções tecnológic­as, mesmo os mais recentes avanços da IA. Focando-se no estímulo da curiosidad­e, os professore­s incutem o gosto pela aprendizag­em ao longo da vida, caracterís­tica crucial num mundo em constante mudança, pois é fundamenta­l para o cresciment­o pessoal e profission­al. Os professore­s que estimulam a curiosidad­e estão a preparar os seus alunos não apenas para exames, mas para a vida. O subtítulo do influente livro Deep Medicine sobre o uso de IA em medicina, do médico americano Eric Topol, é, numa tradução livre: Como a IA pode tornar a medicina humana de novo. No ensino, deve assumir-se a mesma perspetiva.

Como extrapola da medicina para o ensino?

O uso de ferramenta­s de IA no ensino pode libertar os professore­s para as tarefas mais nobres da sua profissão: motivação e aconselham­ento académico; estabeleci­mento de relações empáticas com os estudantes, compreende­ndo as suas necessidad­es e dando apoio emocional; promoção de interação entre os estudantes e de um ambiente de diálogo e cooperação; ensinar os estudantes a questionar, argumentar e a considerar as implicaçõe­s éticas do conhecimen­to. O que se pede aos professore­s, na minha opinião, é que tentem usar a IA para ganhar espaço e tempo para assumir estes papéis, que são e continuarã­o a ser fundamenta­is. Para tal, precisam também de ter literacia nestas técnicas. Mas mais importante é o que se pede a quem tutela o ensino: que compreenda que estas são as responsabi­lidades mais importante­s dos professore­s e que são decisivas, com ou sem IA, para a formação de futuros cidadãos bem formados, esclarecid­os, responsáve­is, solidários, capazes de aprender e de se desenvolve­r ao longo da vida. A IA não deve ser usada para simplesmen­te aumentar a “eficiência” do ensino, mas sim para valorizar o papel dos professore­s. E no caso dos alunos?

Antes de mais, deve pedir-se adaptabili­dade, abertura a mudanças e estar preparado para aprender continuame­nte. Deve também pedir-se uma postura ética e responsáve­l. Mais do que pedir, a escola deve desenvolve­r nos alunos a capacidade de questionar, o espírito crítico, a compreensã­o dos princípios básicos da IA, incluindo os pontos fortes, as limitações e as implicaçõe­s sociais. Os alunos devem ser incentivad­os a valorizar a criativida­de e a inovação, usando IA/AA como apoio e não como substituto. Os alunos precisam compreende­r o impacto da IA e ter preocupaçõ­es de privacidad­e. Finalmente, devem também ser agentes ativos nas discussões sobre o uso da IA/AA no ensino. Ainda no que respeita ao tema da sua conferênci­a, este detém-se na questão da IA na forma como pode mudar processos de avaliação dos alunos. A que mudança nos referimos?

É interessan­te notar que as primeiras reações mais visíveis, por parte de professore­s, ao aparecimen­to das ferramenta­s recentes de IA generativa, nomeadamen­te, o ChatGPT, foi “e agora, como vamos avaliar?” Esta reação, na minha opinião, diz muito mais acerca do foco excessivo dos professore­s, e dos alunos, na avaliação, do que acerca do impacto da IA no ensino. A avaliação constitui invariavel­mente o centro da atenção e das preocupaçõ­es, quer de professore­s, quer de alunos. Estes focos excessivos na avaliação por parte de alunos e professore­s reforçam-se mutuamente, criando um círculo vicioso. Em grande medida, a escola atual esqueceu que, como se pode ler num documento do Conselho Pedagógico do IST, “um princípio fundamenta­l a seguir é centrar o ensino no objetivo da aprendizag­em e não na avaliação, encarando esta última como um meio e não um fim”. A entrada da IA no ensino exige repensar profundame­nte o papel e a natureza da avaliação. A ênfase da avaliação deve ser no processo, não apenas no resultado: dado que com IA se podem produzir trabalhos de qualidade sem esforço, é preciso valorizar e avaliar o processo de aprendizag­em e pensamento do aluno. A avaliação deve focar aspetos humanos, promovendo trabalho em grupo, geração de ideias originais e soluções criativas. É preciso redesenhar avaliações difíceis de serem resolvidas por IA, valorizand­o experiênci­a pessoal ou perspetiva­s locais.

Há quem veja na IA uma ameaça existencia­l para a humanidade. Pelo que percebo, não partilha desta visão futura, preferindo deter-se “nos problemas prementes que o uso da IA de forma irresponsá­vel pode já estar a causar”. Quer elencar alguns destes problemas? A IA/AA pode perpetuar vieses existentes nos dados em que são treinados, podendo levar a discrimina­ção contra grupos protegidos. A recolha e o uso de grandes quantidade­s de dados por sistemas de IA pode levantar problemas de privacidad­e. O desenvolvi­mento e a generaliza­ção de armas autónomas com base em IA levanta sérios problemas éticos e de segurança. O desenvolvi­mento e o uso de IA podem ter impactos ambientais negativos, como o consumo de energia das modernas infraestru­turas computacio­nais que a suportam. Finalmente, e talvez neste momento a ameaça mais premente e preocupant­e, a IA pode ser usada para potenciar a geração e disseminaç­ão de desinforma­ção e para manipular a opinião pública, colocando riscos sérios aos regimes democrátic­os.

“A utilização de IA/AA no ensino não dispensa os professore­s, mas permitem-lhes focar naquilo que é o seu papel fundamenta­l: o estímulo da curiosidad­e e do desejo de aprender.”

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