Anthony Marra “Nunca é bom sinal quando um romance de época se parece com a atualidade”
LITERATURA Domingos no Cinema, o novo romance do americano Anthony Marra, vai buscar à Hollywood dos anos da Segunda Guerra Mundial um reflexo criativo dos tempos que correm. É uma carta amor, sim, mas não aos protagonistas de sempre.
Anthony Marra (n. 1984, Washington DC) ainda não é um nome na ponta da língua dos leitores portugueses. Mas talvez Domingos no Cinema (Porto Editora, tradução de Inês Amado) ajude a fixar o autor: um livro que nos transporta para o coração dos anos 1940 na indústria do cinema americano, e com um pezinho na década de 30, captando, pela linha romanesca, a memória dos imigrantes acolhidos por uma Hollywood de muitos conflitos internos. Mercury Pictures é o estúdio de filmes B que serve de segunda casa a uma dessas jovens imigrantes, Maria Lagana, vinda da Itália de Mussolini, onde deixou o pai confinado na Calábria. Mas serão muitas mais as personagens retratadas por um livro generoso em emoções discordantes, que usa o humor para mitigar as tragédias íntimas. De San Lorenzo a Los Angeles, somos conduzidos pelo gesto de uma escrita fértil, elegante e engenhosa na mistura de referências históricas, culturais, cinematográficas e pessoais.
O escritor que esteve em Lisboa no ano passado para uma sessão de conversa na FLAD – e que diz já ter visitado Portugal três vezes, “um dos seus lugares favoritos” –, esteve à conversa com o DN, a partir do Connecticut, sobre este segundo romance publicado no nosso país, depois de O Czar do Amor e do Tecno (Editorial Teorema).
O título português, Domingos no
Cinema, é diferente do original Mercury Pictures Presents. E é uma opção muito interessante, porque transmite uma qualidade nostálgica, sendo que a nostalgia neste livro é habilmente contornada através da ironia... O que é que tem a dizer sobre esta porta de entrada para o seu romance? Adoro o título português! Muitas vezes, quando os livros são traduzidos, há um conjunto de referências que, sendo inteligíveis para o leitor americano, podem não o ser para um leitor de outra língua ou cultura, e os títulos procuram o ponto intermédio. Gosto particularmente do vosso título porque tem essa capacidade de me remeter para as idas ao cinema ao domingo, mas, em especial, porque no romance a Maria [Lagana] associa ela própria o domingo às idas ao cinema com o pai – portanto, está ligado ao mundo do livro. Mas, precisamente, em termos da qualidade nostálgica que apontou, uma das coisas de que eu estava bem ciente, no ato da escrita, é aquilo que vai contra os vários tipos de histórias sobre as estrelas de Hollywood, realizadores, etc., essa espécie de vaga de nostalgia que surge quando se está a falar da velha Hollywood. E imaginei um romance histórico “desembainhado” pela visão, ou pelo olho crítico e irónico, de um escritor contemporâneo. Em suma, o título pode remeter para um cenário de nostalgia, mas o texto complica esse sentimento.
E gosta de ir ao cinema?
Gosto muito. Quando era miúdo ia sobretudo ao domingo, claro, com os meus pais. E eles faziam questão de ficar mesmo até ao fim dos créditos, para os ler todos e para saber onde o filme tinha sido rodado. Acho que é por causa disso que, desde muito cedo, ganhei consciência de que há centenas de pessoas envolvidas na produção de um filme; não são apenas os atores que vemos no grande ecrã. Hoje em dia ainda vou bastante ao cinema, mas, infelizmente, na cidade onde vivo agora com a minha mulher, no Connecticut, a última sala fechou em outubro do ano passado... Tenho alguma esperança de que a situação se inverta, mas entristece-me muito este facto. Segundo sei, o Anthony estava a viver em Los Angeles quando escreveu o livro. Há alguma relação entre essa experiência e a génese da obra?
Sim, antes do Connecticut, vivi uma larga temporada em Los Angeles, e a época dos Anos 30 e 40, quando muitos refugiados chegaram a L.A., sempre me fascinou: é um momento sísmico, de transfusão cultural na história da cidade. Foi algo que transformou não só Hollywood, mas Los Angeles num todo. E ao escrever sobre Hollywood, tentei manter uma certa distância da Segunda Guerra Mundial, para evitar os clichés que
são quase sempre evocados nas histórias deste período.
A certa altura, enquanto lia o seu romance, lembrei-me de algo que Jean Renoir [um dos cineastas exilados durante o período em causa] escreveu na autobiografia, sobre a sua chegada a Hollywood. Diz ele: “A Hollywood da nossa imaginação era a velha Hollywood, que já pertencia ao mundo dos fantasmas”. E ele chegou em 1940! Ou seja, há esta ideia, comum a qualquer época, de Hollywood como um mito. Como é que se relaciona com esse mito?
Eis uma grande questão! Para mim, talvez seja mais pessoal: lembro-me de, na altura em que vivia em L.A., caminhar muito à volta do letreiro de Hollywood, de olhar para a bela estrutura estabelecida na encosta, tirar fotos, e tudo isso... muito bonito e tal. Mas depois, quando nos aproximamos, é garrafas de cerveja por todo o lado, e parte do encanto desaparece. Este letreiro é a imagem de Hollywood projetada para o mundo, e essa imagem torna-se diferente à medida que nos aproximamos – diria que é assim que penso em Hollywood.
Dentro das inúmeras possibilidades de abordagem dessa Hollywood, Domingos no Cinema consegue ser muito específico e, ao mesmo tempo, captar uma imagem ampla daquele tempo, quase como um épico...
Esse é um aspeto com que me debato muito na escrita, porque penso que o específico é aquilo que faz um lugar ganhar vida – julgamos os escritores em função da especificidade. Ao terminarmos a leitura de um livro, se este realmente nos tocou, daqui a 10 anos ainda somos capazes de recordar um simples detalhe desse mesmo livro. O mais provável será não nos lembrarmos de todo o enredo: é através dos detalhes que o livro encontra a sua vida eterna na mente de um leitor. E nesse sentido, eu estava mais sintonizado com o lado específico do que com o lado épico. Senti que, ao seguir uma sucessão de pequenos detalhes, eventualmente chegaria a algo maior. Aliás, enquanto estava a fazer pesquisa, sempre que me deparava com um pormenor que se destacava para mim, escrevia logo qualquer coisa, para guardá-lo e depois arranjar uma maneira de o inserir no quadro geral – foi o que aconteceu com a tartaruga de estimação (de uma personagem alemã, AnnaWeber) que leva diamantes cravejados na carapaça, passando debaixo do nariz do guardas fronteiriços... Ora, o tom épico vem do desejo de criar um livro em que todos estes pormenores e momentos que ficaram comigo se tornassem plausíveis.
No princípio, achamos que a protagonista da história é Maria Lagana. Mas à medida que avançamos nas páginas, percebemos que as outras personagens também têm direito ao seu grau de protagonismo. O que me leva a perguntar: acredita nalgum tipo de “democracia narrativa”?
É uma bela forma de o dizer, sim. Gosto muito da ideia de escrever romances em que não há personagens secundárias. Onde todas as personagens, não importa quão periféricas sejam, têm o seu momento “debaixo dos holofotes”. Foi o caso nos meus dois livros anteriores, mas aqui é ainda mais significativo, porque estamos a falar de Hollywood, um universo cheio de personagens secundárias e figurantes – para além disso, esta é uma história sobre exilados e refugiados. A minha esperança é que o leitor, ao chegar ao final do livro, seja capaz de se lembrar de todas as personagens, apenas através de alguns parágrafos que tenham transmitido a sua vitalidade e presença, de modo a fixarem-se na imaginação.
Este livro fala ao nosso presente. Pode dizer-se que o presente teve também uma função criativa? Penso que os romancistas históricos descrevem o seu tempo variando em função da época em que os seus livros se situam. Por isso, a paisagem política do presente estará sempre, desta ou daquela maneira, representada na sua obra. No meu caso, comecei a trabalhar no livro em 2014/2015, e nessa altura o presidente ainda era Barack Obama, o que me fez pensar que havia poucos paralelos entre a minha narrativa e a contemporaneidade americana... Claro que a seguir, com a eleição de Donald Trump e a emergência do movimento America First, os paralelismos entre a América das décadas de 30/40 e o cenário presente ficaram muito mais evidentes – nunca é um bom sinal quando um romance de época se parece com a atualidade. E conforme a presidência de Trump prosseguia, a minha maior dificuldade foi gerir a narrativa em relação à realidade, para que o paralelo não fosse demasiado óbvio. Nesse sentido, o momento político está constantemente a mudar a forma como se aborda o passado. De resto, há esta falsa noção de que as forças aberrantes que se revelaram na política americana através de Trump são uma novidade. O certo é que essas forças andam por aqui desde o início. A América é um país assente nos imigrantes e a xenofobia sempre existiu. Por outras palavras: a História é mais criativa do que qualquer escritor.
Nos agradecimentos, refere que o episódio das fotografias rasgadas de Nino [outra das personagens] tem origem numa prática entre migrantes portugueses, que lhe terá sido revelada pelo escritor Hugo Gonçalves. Fale-nos dessa prática e do contexto em que tomou conhecimento dela.
Estava num festival literário, penso que em 2020, quando o Hugo, à conversa comigo, referiu isso como sendo uma prática dos Anos 50/60, ou seja, no período salazarista. Basicamente, o que acontecia é que os migrantes ficavam com uma parte da fotografia e as suas famílias em Portugal ficavam com a outra metade. Quando o contrabandista devolvesse a metade em falta, a família saberia que o migrante chegara ao destino. Era uma garantia. E o que me interessou nesta prática foi a sua expressão forte do que significa deixar o lar, e mesmo um certo sentido de rutura física e cicatrização. Tenho de confessar algo que me intrigou durante a leitura: ao longo do romance, vai aparecendo um gato em diversas descrições de cenas, quase como se estivesse a passar por ali e não pudesse ser ignorado. Há alguma razão lógica para este motivo recorrente?
[Para satisfazer a nossa curiosidade, Anthony Marra levantou-se sorridente, em silêncio, e levou o seu portátil até à zona da casa onde dormitam os seus dois gatos]. Vamos ver se encontramos a fonte de inspiração... E aqui está! Enquanto estava a escrever o romance, este [o gato que se vê na foto] deitava-se na minha secretária e ficava a olhar para mim fixamente. Assim que me levantava, ele mostrava-se zangado... No livro, tornou-se o gato que pega fogo à casa do inspetor Ferrando! Portanto, estes dois são a minha fonte de inspiração. Os gatos estão condenados a aparecer sempre algures na minha escrita.
“Imaginei um romance histórico ‘desembainhado’ pela visão, ou pelo olho crítico e irónico, de um escritor contemporâneo. O título pode remeter para um cenário de nostalgia, mas o texto complica esse sentimento.”
“O que me interessou na prática portuguesa das fotografias rasgadas dos migrantes foi a sua expressão forte do que significa deixar o lar, e mesmo um certo sentido de rutura física e cicatrização.”