“Abortar é legal, o acesso existe, mas é tudo menos fácil”
Com mais de 30% dos hospitais do SNS a recusar fazer interrupção de gravidez por vontade exclusiva da mulher, há mulheres a ter de esperar várias semanas – em violação da lei – para aceder a este direito que, consagrado desde 2007, só podem exercer no pra
O “aborto é gratuito e legal, certo, e o acesso existe – mas é tudo menos fácil. Eu por exemplo tive a primeira consulta do processo marcada para 26 dias depois do meu pedido. 26 dias – mais de cinco vezes o prazo máximo de cinco dias previsto na lei. Pode estar despenalizado, mas a alguma altura do processo fazem-nos sentir que estamos a fazer uma coisa imoral, que somos culpadas.”
Quem fala é Patrícia, administrativa de 36 anos, e a experiência diz respeito ao Hospital de Vila Franca de Xira, em outubro de 2022. O primeiro contacto com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ocorreu a 20 de outubro; o hospital disse-lhe que só tinha consulta a 15 de novembro. Quase quatro semanas de espera até à primeira consulta, às quais se somaria ainda o “período de reflexão” obrigatório, de três dias, entre essa consulta e o procedimento, e quando a lei só permite interromper até às 10 semanas de gravidez.
Quando em fevereiro de 2023 falou com o DN, para a investigação que o jornal publicou sobre a violação da lei do aborto no SNS, Patrícia falou do processo como “uma corrida de obstáculos”. Agora, face às declarações do vice-presidente do CDS-PP, Paulo Núncio, candidato a deputado pela AD, que defendeu “limitar o acesso ao aborto logo que possível” e proclamou ter o governo PSD/CDS-PP, em 2015, sido “dos primeiros governos do mundo a tomar medidas no sentido de dificultar o acesso ao aborto”, a voz treme-lhe. “Assusta-me ver este direito posto em causa, faz-me confusão isto ser sequer discutível, é uma insegurança muito grande para as mulheres. Como é que se pode querer regredir tanto? Esperava que se melhorasse.”
O caso extremo de Patrícia está, como a investigação do DN e os relatórios oficiais subsequentes sobre acesso à interrupção de gravidez (IG) – da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), da Inspeção Geral das Atividades em Saúde e da Direção Geral da Saúde (DGS) – comprovam, longe de ser uma exceção. O facto de mais de 80% dos médicos da especialidade de ginecologia e obstetrícia do SNS se declararem objetores para a IG até às 10 semanas por exclusiva vontade da mulher (em fevereiro de 2023, havia, segundo a ERS, apenas 81 médicos obstetras e ginecologistas disponíveis para realizar interrupções de gravidez nos 31 hospitais que oferecem esse serviço em Portugal continental), e de mais de 30% dos hospitais não a efetuarem alegando essa mesma objeção, resulta em graves dificuldades de acesso que têm sido reconhecidas em deliberações da ERS e em estudos científicos.
De acordo com os dados tornados públicos pela DGS no final de 2023, se em 2022 pelo menos 20% das mulheres que quiseram aceder à IG tiveram de esperar mais de cinco dias pela primeira consulta, para 5% o prazo legal de espera foi duplicado ou triplicado. Números que, comprova a investigação do DN, pecam por demasiado otimistas: quando em fevereiro de 2023 o jornal assumiu o papel de uma mulher pretendendo aceder a este cuidado de saúde, ligando para vários hospitais, constatou que não só é muito difícil conseguir chegar à fala com o serviço certo – a falta de informação parecia imperar nos próprios estabelecimentos, onde funcionários assumiam não saber responder ou davam respostas contraditórias, erradas ou até tortas (sucedeu com o Hospital da Guarda, onde foi dito “aqui não fazemos, porque é um hospital amigo dos bebés”) – como os prazos de marcação de consulta vão muito para além do que os relatórios apontam.
Por exemplo no Hospital de Santarém, onde não se fazem IG até às 10 semanas por, alega a administração, todo o corpo clínico ser objetor, a informação recebida foi de que só daí a 13 dias haveria consulta – que nem sequer contaria como “consulta prévia”, servindo apenas para datar a gravidez, sendo depois a mulher “passada” para a Clínica dos Arcos, em Lisboa. Foi essa exatamente a experiência de Madalena, 18 anos, residente em Santarém, em janeiro de 2023. Ao ligar para o hospital, marcaram-lhe a “datação” para 12 dias depois. A reclamação da mãe, Rita, que não se conformou, invocando a lei, conseguiu encurtar o prazo para metade. Ainda assim, teve de ouvir da funcionária que a atendeu: “Não tenho médicos para as grávidas, vou ter para as IG? Se está com pressa, marque diretamente para clínica e pague”.
Rita perseverou e a filha conseguiria abortar, na Clínica dos Arcos, a expensas do SNS, mas apenas 19 dias depois do primeiro contacto com o hospital e já após as nove semanas de gravidez. Quando falou com o DN, no mês seguinte, a mãe, Rita, ainda fervia: “Andámos a fazer campanha pelo direito à IG em 2007, há 16 anos, com as filhas bebés ao colo, também por elas. E agora são enxovalhadas desta maneira. Isto não pode acontecer.”
Enquanto vários países europeus eliminam obstáculos no acesso à IG – França e Espanha acabaram com o “período de reflexão” obrigatório de três dias entre a primeira consulta e o procedimento e aumentaram o prazo gestacional permitido; no Reino Unido, consagrou-se a IG medicamentosa por “telemedicina” (os medicamentos necessários são enviados pelo correio) – em Portugal a revelação das dificuldades no acesso e das grandes desigualdades existentes entre diferentes zonas do país (que um estudo noticiado pelo DN demonstra implicarem, nas zonas mais afastadas de serviços onde se realizam IG, uma menor taxa deste cuidado de saúde, podendo implicar que ali se recorre ao aborto clandestino) não levaram até agora a qualquer alteração à lei e aos regulamentos.
Na verdade, como se comprova, a lei e os regulamentos não estão sequer a ser cumpridos nos hospitais portugueses: além de os prazos serem violados, o registo, obrigatório, de objetores de consciência (e com o qual o PSD e o CDS-PP acabaram, em alteração à lei no último dia da legislatura 2011/15, medida anulada pela maioria de esquerda que resultou das eleições de outubro de 2015) não estava até 2023, segundo a ERS, a ser efetuado.
A anos-luz da consagração constitucional esta quarta-feira aprovada no Senado francês (fazendo, com 267 votos a favor e 50 contra, da França o primeiro país do mundo a inscrever o direito ao aborto na lei fundamental), Patrícia, a Patrícia que sentiu o processo de interrupção de gravidez em Portugal como uma culpabilizadora “corrida de obstáculos”, vê ainda assim algum progresso. “Houve coisas que mudaram desde que falei com o DN e esta situação foi revelada. Agora o atendimento automático no Hospital de Vila Franca de Xira já tem a opção interrupção da gravidez. Já não se tem de, como sucedeu comigo, ligar para o geral e falar com não sei quantas pessoas até chegar ao sítio certo. E espero que já não levem 26 dias a marcar uma consulta. Que a minha história tenha servido para alguma coisa.”
Quando Rui Rocha entrou no autocarro da Iniciativa Liberal (IL), no final da sua primeira grande arruada nesta campanha eleitoral, nem a pior informação de trânsito seria capaz de apagar o sorriso do líder partidário, que ontem à tarde ainda iria reunir com empresários no concelho de Oeiras. Além de ter tido uma centena de apoiantes animados e sonoros a caminharem ao seu lado no centro de Lisboa, do Campo Pequeno ao Marquês de Pombal, Rocha serviu-se de uma polémica do dia para marcar diferenças em relação à Aliança Democrática (AD), apelando aos eleitores que aumentem a força do seu partido numa futura maioria.
No final da manhã, após uma reunião com a União das Misericórdias Portuguesas, na qual discutiu o contributo do sector social no combate à pobreza e nos cuidados de saúde, Rocha criticou as declarações do vice-presidente do CDS-PP, Paulo Núncio, que admitiu um referendo para alterar a legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez. “Isso salienta a necessidade de dar força à IL para a transformação, que desejamos ser de futuro e não no sentido do passado. Não quero um país em que mulheres são perseguidas ou têm de fazer atos na clandestinidade”, disse, com “certeza absoluta” de que, pelo
Rui Rocha foi acompanhado por cerca de uma centena de apoiantes na zona central de Lisboa.
PSD, “não haverá viabilização” do que descreveu como “retrocesso”.
A meta de “aumentar pelo menos em 50%” o grupo parlamentar, passando de oito para 12 deputados, foi repetida durante a arruada nas Avenidas Novas, território ideal para encontrar eleitores liberais, mais novos e mais velhos, dispostos a conversar com Rui Rocha.
Com o som dos bombos a marcar
o ritmo da caminhada, por entre o mar de bandeiras azuis-claras da IL, destacava-se a de Cuba, empunhada pelo luso-cubano Alberto Perez, que se apresentou ao DN como membro 2445 do “único partido a condenar veementemente” a repressão da oposição do seu país natal, a 11 de julho de 2021. E que é “a única oportunidade de um Portugal melhor, livre do socialismo”.
“Tinham vontade de ver uma grande arruada, pois ela aqui está”, disse Rui Rocha, animado pelas buzinadelas dos automóveis, e por casos como o do jovem Martim, indeciso entre a AD e a IL, mais convencido após usar uma aplicação que calcula quanto teria mais no final do mês com a reforma fiscal defendida pelos liberais.
PS
Pedro Nuno Santos arranca em Vendas Novas (10:00), vai a Évora (11:00), ao troço do Alandroal (16:00) e a comício em Portalegre (21:00).
AD
Luís Montenegro vai a Ansião (11:00), Leiria (15:00) e Rio Maior (17:00). Tem jantar-comício em Ourém (20:00).
CHEGA
André Ventura faz comícios em Macedo de Cavaleiros (13:00) e na Guarda (20:00).
INICIATIVA LIBERAL
Rui Rocha reúne na Navigator, na Mitrena (10:00). Em Lisboa, vai ao Conservatório (15:00) e à Cidade Universitária (18:00).
BLOCO DE ESQUERDA Mariana Mortágua vai à antiga escola Veiga Beirão (13:00), em Lisboa. E faz jantar-comício em Leiria (20:00).