Diário de Notícias

Amnistia para soldados britânicos não respeita direitos humanos europeus

Tribunal Superior decidiu que não existem provas de que a concessão de imunidade contribua para a reconcilia­ção na Irlanda do Norte.

- TEXTO ANA MEIRELES

OTribunal Superior de Belfast decidiu ontem que a lei do Governo britânico que dá imunidade condiciona­l a soldados e paramilita­res por crimes cometidos durante o Conflito da Irlanda do Norte viola a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. “Não há provas de que a concessão de imunidade ao abrigo da lei contribua de alguma forma para a reconcilia­ção na Irlanda do Norte. Na verdade, a evidência é o contrário”, referiu o juiz-presidente Adrian Colton na decisão de 200 páginas proferida ontem. Esta decisão poderá ser contestada no Tribunal de Recurso da Irlanda do Norte e, depois disso, no Supremo Tribunal do Reino Unido.

Em causa estão dois artigos da Lei de Legado e Reconcilia­ção, concebida durante o Governo de Boris Johnson mas só aprovada pelo Parlamento de Londres em setembro, e que concedem amnistia condiciona­da aos soldados e paramilita­res que colaborare­m com uma nova agência de investigaç­ão, a Comissão Independen­te para a Reconcilia­ção e Recuperaçã­o de Informação (CIRRI).

Apesar deste entendimen­to quanto à questão da amnistia, o Tribunal Superior da Irlanda do Norte decidiu que a CIRRI pode investigar questões dos direitos humanos. “Tem amplos poderes e ampla margem de discricion­ariedade para realizar as suas revisões. Caso a comissão não cumpra as suas obrigações em matéria de direitos humanos, estará sujeita ao escrutínio judicial”, referiu o juiz. “Iremos considerar as conclusões do juiz-presidente Colton com muito, muito cuidado, mas continuamo­s comprometi­dos com a implementa­ção da Lei de Legado”, reagiu ontem Chris Heaton-Harris, secretário do Governo britânico para a Irlanda do Norte.

Mais de mil mortes ocorridas na Irlanda do Norte entre a década de 60 e 1998, ano em que foi assinado o Acordo da Sexta-Feira Santa, continuam por resolver e, apesar do pequeno número de processos levados a tribunal nos últimos anos ter falhado a obtenção de condenaçõe­s, as famílias das vítimas querem manter o direito de processar os responsáve­is.

A Lei de Legado e Reconcilia­ção tem sido duramente criticada pelas famílias das vítimas, mas também pelos partidos norte-irlandeses, tanto unionistas como nacionalis­tas, e pela República da Irlanda. Já grupos de veteranos britânicos receberam bem a legislação, dizendo que os antigos soldados têm sido injustamen­te visados em processos. Em novembro de 2022, David Holden tornou-se no primeiro soldado britânico condenado por uma morte cometida durante o Conflito da Irlanda do Norte desde 1998, recebendo três anos de pena suspensa.

Tensão entre Londres e Dublin

Em dezembro, a República da Irlanda avançou com um processo separado contra o governo britânico, no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a contestar a Lei de Legado e Reconcilia­ção no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, dizendo que vedava o acesso à justiça de vítimas e sobreviven­tes. Uma atitude que causou fricção entre Dublin e Londres.

“Lamento que nos encontremo­s numa posição em que tal escolha tenha de ser feita”, declarou, na altura, o vice-primeiro-ministro irlandês, Micheál Martin. “Mesmo nos casos em que a imunidade não é concedida, as revisões dos órgãos propostos, a Comissão Independen­te para a Reconcilia­ção e Recuperaçã­o de Informação, não são um substituto adequado para investigaç­ões policiais, realizadas de forma independen­te, adequada e com participaç­ão suficiente dos familiares mais próximos”, acrescento­u. Chris Heaton-Harris respondeu de forma crítica, declarando que “em nenhum momento desde 1998 houve qualquer tentativa concertada ou sustentada por partes dos irlandeses de prosseguir uma investigaç­ão criminal e uma abordagem baseada em processos judiciais para o passado”.

Ontem, Simon Harris, ministro da Educação Superior da República da Irlanda, saudou a decisão tomada em Belfast:“Certamente parece positivo, e positivo do ponto de vista do Governo irlandês querer trabalhar para garantir que todas as famílias obtenham justiça”.

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