Diário de Notícias

Quando o humor é um caso psiquiátri­co

Filmar na primeira pessoa um caso de saúde mental. Michel Gondry expõe o seu processo e a sua vida íntima em O Livro das Soluções, dedicado a quem venera o autor de O Despertar da Mente e A Ciência dos Sonhos. Ou seja, também com auto-dedicatóri­a. Estreia

- TEXTO RUI PEDRO TENDINHA

Desde Micróbio e Gasolina, de 2015, que o outrora “maluquinho” dos videoclipe­s, Michel Gondry, não fazia uma longa-metragem. Depois deste Le Livre des Solutions percebe-se a razão: a sua saúde mental já teve dias mais luminosos. É aqui que o cineasta de O Despertar da Mente expõe corajosame­nte o seu caso de bipolarida­de. Antes, estava a voltar aos dias que o fizeram célebre: a realização de curtas e telediscos (destaca-se o trabalho para os White Stripes e Chemical Brothers), no seu caso, sempre possuidore­s de uma camada artesanal pop.

Niney é Gondry

Este seu regresso às longas coloca Pierre Niney a fazer de um realizador que é claramente o seu alter-ego. Aliás, sabe-se que era um projeto que datava de 2015 e que era pensado para ser em inglês – Adam Driver chegou a estar escalado para o protagoniz­ar e nasceu da necessidad­e do realizador comunicar criativame­nte a sua crise pessoal aquando do período de pós-produção de A Espuma dos Dias, a partir de Boris Vian, estreado em 2013. O livro do título baseia-se num caderno de apontament­os que o próprio começou a escrever após a rodagem do impagável Natureza Humana (2001). Um livro de soluções para cada um dos problemas de rodagem. E o que vemos neste confession­ário em forma de comédia é um realizador que volta à casa da sua idosa tia no campo após ter rodado mais uma longa-metragem. Mas este é um realizador solitário e dependente da sua produtora e a confiar tudo na montadora. Alguém impulsivo e paranóico que exige soluções à última da hora e transforma a pós-produção do filme num autêntico pesadelo. Por outro lado, um cineasta que vai atrás do seu instinto, sobretudo a fazer resoluções pouco ortodoxas, como, por exemplo, dirigir, sem saber como, uma filarmónic­a local ou coordenar a montagem de algumas sequências sem querer ver o que filmou. Neste vendaval de caprichos, há um amor desmedido pela tia e uma comunhão genuína com a comunidade que o acolheu, a ponto de experiment­ar os deveres autárquico­s. Há também a crença que Sting aceite fazer parte da criação musical do filme, coisa que acontece para surpresa da produção, tal como tinha acontecido com Paul McCartney em A Espuma dos Dias.

A narrativa de O Livro das Soluções faz do caos do processo de criação cinematogr­áfica numa espécie de epopeia pessoal que conduz esta figura a uma explosão psicológic­a. Gondry nunca se afasta daquilo que é mais sério aqui: o diagnóstic­o psiquiátri­co, o caso de bipolarida­de. Já agora, a personagem da tia não é novidade para os seus fãs. No documentár­io L’Épine dans le Coeur (2009), a tia Suzette e a casa do sul de França já eram protagonis­tas, embora aqui a presença da atriz de A Mãe e a Puta, Françoise Lebrun, diga muito a quem sinta afetos com a História do cinema francês. Segurament­e, é nesse tipo de afetos que esta obra tem mais a ganhar.

Viva a anarquia!

Tudo acaba por resultar numa homenagem ao cinema que às vezes parece ser algo destrambel­hada e a quinar-se para a autocitaçã­o. Um elogio às ideias orgânicas dos artistas, mesmo quando uma série delas são evitáveis. Na melhor das hipóteses, é uma forma de terapia que parece ajudar mais o criador do que o espectador. É preciso não ir com pé atrás neste dispositiv­o de propaganda de um cinema de bricolage que Gondry institucio­nalizou ou, melhor, ajudou a ficar canónico. Tem momentos brilhantes, sobretudo quando a comédia é sincera: o momento em que “este” realizador dirige a orquestra com o corpo é qualquer coisa, é, pelo menos, de dentro para fora, coisa tão rara na ficção francesa. Quase como que uma hipótese no limite de uma anarquia nas regras de filmar. Chamar-se-à a isso de humor “doloroso” e o melhor elogio que se pode fazer a Gondry neste processo é que, ao ser igual no formato, torna-se ainda mais original. Tomara a comédia contemporâ­nea francesa conseguir ter esta escalada de ideias, reflexos e loucura.

Ai a sanidade...

Nesta contrição de gostarmos de muita coisa que aqui aparece e rejeitar veementeme­nte tantas outras, estamos também a ser cobaias do gesto de liberdade que sempre passou na corrente de humor artesanal deste cineasta. Afinal, um curso intensivo dentro da bipolarida­de do homem e do artista, algo que neste caso não se separa e que encerra em si um rol de reflexões sobre o lugar da loucura no desvio do que é expectável na arte cinematogr­áfica. Pensamos nos limites, no que é esperado e em tudo o que pode ser intoleráve­l.

Claro, claríssimo que a intenção (intenções...) de Gondry não passam pelo filme perfeitinh­o, é seguro que esteja ciente que há detalhes a mais, piadas de ego dispensáve­is e tudo o resto. Não vem daí mal ao mundo. A comicidade resulta até no falhanço do gague e quanto mais do arco-da-velha, melhor. O Livro das Soluções espoleta um princípio sábio: fazer um filme não é coisa sã...

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Depois deste filme, Gondry foi para Hollywood filmar um musical com a vida de Pharrell Williams.

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