O neorrealismo ainda existe?
Dois jovens senegaleses partem de Dakar para encontrar uma Europa que imaginam utópica e redentora: com o filme Eu Capitão, o cineasta italiano Matteo Garrone filma uma odisseia contemporânea marcada por um primitivo desejo de realismo.
Revelado no último Festival deVeneza, nomeado para o Óscar de melhor filme internacional, Eu Capitão (a partir de hoje nas salas portuguesas) leva-nos a sublinhar o facto de o cinema italiano continuar a ser um fundamental espaço de referência no interior da produção europeia. E tanto mais quanto a história de dois rapazes senegaleses que partem para Itália, tentando escapar à pobreza da sua vida em Dakar – interpretados pelos magníficos Seydou Sarr (prémio de melhor jovem ator em Veneza) e Moustapha Fall –, contém ecos simbólicos das sagas neorrealistas que autores como Roberto Rossellini conceberam há cerca de oito décadas, de alguma maneira abrindo portas para a modernidade cinematográfica que, na década de 1960, geraria as NovasVagas.
Que está, então, em jogo? Nada mais nada menos que a possibilidade de representação da aventura trágica de dois jovens, Seydou e Moussa, que abandonam o seu país movidos e motivados pela ilusão de uma luminosa utopia europeia, acabando por enfrentar os perigos de uma paisagem desértica de gangs criminosos e violência infernal.
Com resultados desiguais, mas sempre motivadores, o realizador de Eu Capitão, Matteo Garrone, é alguém que se tem confrontado com esse desafio de instilar realismo em retratos de personagens e situações que, no limite, desafiam a própria definição de “realidade” – exemplo esclarecedor poderá ser o seu filme mais conhecido, Gomorra (2008), sobre os circuitos do crime em Nápoles. Há em Garrone a energia e o espírito crítico de um olhar que resiste aos estereótipos da “velocidade” televisiva e aos respetivos mecanismos moralistas. Certamente não por acaso, é dele o notável Reality (2012), contundente libelo contra a chantagem humana do Big Brother televisivo, distinguido em Cannes com o Grande Prémio do Júri.
Claro que a conjuntura social e cinematográfica em que Garrone trabalha invalida qualquer especulação no sentido de reduzir Eu Capitão a uma “repetição” de matrizes neorrealistas – mesmo admitindo que a vulnerabilidade de Seydou e Moussa possa ser interpretada como um eco simbólico dos sofrimentos de personagens de filmes como Ladrões de Bicicletas (1948), de Vittorio De Sica. O que, creio, importa reter é o facto de Garrone, tal como os mestres italianos do passado, entender o seu labor como uma aventura de descoberta dos mais pequenos detalhes das personagens (da significação das palavras ao uso de camisolas de equipas de futebol europeias, incluindo a seleção portuguesa), suscetíveis de nos fazer compreender a complexidade social, económica e cultural da realidade com que cineasta e espectador estão confrontados.
Inevitavelmente, a narrativa de Seydou e Moussa remete-nos para o tema dos refugiados no mundo contemporâneo, em particular a fuga de muitos africanos para os países europeus do Mediterrâneo. Com uma dimensão que importa sublinhar: em vez de um discurso paternalista e generalista para consumo televisivo descartável, Garrone filma gente viva e situações concretas: o desejo de realismo persiste como um método possível para o cinema.