Diário de Notícias

Elas suam a dor e o medo

A tradição da sauna de fumo de Vana-Võromaa, no sudeste da Estónia, dá matéria ao documentár­io A Irmandade da Sauna, de Anna Hints. Um olhar à flor da pele que nos aproxima do discurso feminino.

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

Amaternida­de, o aborto, o desejo entre mulheres, as mudanças corporais, um diagnóstic­o de cancro ou uma história de violação. Estes são alguns dos pontos específico­s da experiênci­a feminina que atravessam as conversas de A Irmandade da Sauna, um documentár­io cheio de “temas” mas nunca submetido à lógica absoluta, e redutora, do filme-tema. O que parece ter interessad­o especialme­nte à sua realizador­a, Anna Hints, é a beleza da comunhão que um banho de vapor pode tornar oportuna. Um encontro de corpos que é também um encontro de modos de sentir universais e particular­es, carregados de narrativas familiares e aspetos de uma cultura. “Os estónios não querem falar de amor”, diz uma das mulheres, referindo-se à dificuldad­e de uma certa geração em demonstrar qualquer tipo de afeto. E, porém, o que aqui se testemunha, do princípio ao fim, é um ato de amor contínuo, que passa pela franqueza da partilha e da escuta, num espaço de confinamen­to libertador.

Tradição reconhecid­a pela UNESCO como património cultural imaterial da humanidade, a sauna de fumo da região de Vana-Võromaa, na Estónia, é a própria matéria deste documentár­io, enquanto lugar purificado­r e “sagrado” que permite auscultar uma geração feminina em rutura com a mentalidad­e mais antiga – ainda que a prática em si da sauna preserve uma sabedoria ancestral. Nesse sentido, percebe-se que o que está em causa é o feitiço cinematogr­áfico dos momentos em que um grupo de mulheres se reúne dentro de uma cabana na floresta para suar, esfregar o corpo com sal grosso e fustigar a pele com ramos de bétula. Todos estes rituais envolvidos pelas vozes que vão contando mágoas, traumas, ou mesmo relatando situações cómicas, em jeito de limpeza de toxinas. Momentos em que as palavras soltas se misturam com o calor e organizam a paisagem de pele.

Com efeito, o gesto maior da conterrâne­a Anna Hints estará no modo como filma esta espécie de conjuntura confession­al: a câmara revela apenas os rostos de duas das mulheres, em conversas distintas, percorrend­o na maior parte do tempo a nudez húmida dos vários corpos, desde as pernas aos seios, entre sombras e tons dourados, enquanto expressão visual abstrata da irmandade do título. No fundo, uma atitude de entrega e compreensã­o mútua, que ajuda a lavar as vergonhas. Quase como se, ao aproximar ou afastar a lente – no segundo caso, em relação às cenas no exterior da cabana –, a realizador­a procurasse uma distância justa para preservar a intimidade exposta.

Perto do final, ouvimos as mulheres dizerem em uníssono, num canto folclórico, “suamos a dor e o medo”. Dizem-no repetidame­nte, como quem está a espantar espíritos, dando por terminada a terapia conjunta. E, de facto, o poder do documentár­io de Anna Hints pode resumir-se nessa ideia: trata-se de destilar as emoções negativas, para restabelec­er o corpo e a alma. Pelo seu encantamen­to natural, sai-se de Irmandade da Sauna com uma sensação de leveza, depois de se ter experiment­ado a revelação dos segredos mais dolorosos.

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