BBC vida selvagem, palhaços e ilusionistas
Quando olhei para a televisão e vi Luís Montenegro encharcado em tinta verde, com alguém a limpar-lhe atabalhoadamente a cara e a cabeça com um lenço de assoar, não contive o riso. E calculei que as redes sociais já estivessem repletas de divertidos memes a compará-lo com o Hulk ou o homem da máscara verde de The Mask. Portugal pode ter perdido o título no Guinness do “Cão Mais Velho do Mundo”, sendo que a questão central aqui devia ser esclarecer que o Bobi pode ser um cão que viveu no Alentejo, mas nunca foi seguramente (da raça) rafeiro alentejano. Nós, portugueses, somos os reis dos memes e a desgraça alheia dá-nos vontade de rir. Abrandamos na autoestrada para orçamentar os desastres e a televisão emite há décadas programas com vídeos cómicos de pessoas a cair. A tropeçar em valetas, a voar de mota contra a parede, a despenharem-se em saltos acrobáticos do alto de escadas rolantes. E rimos às gargalhadas! Nada é tão divertido como ver alguém a cair! O nosso instinto animal, camuflado cuidadosamente por doses variáveis, consoante o sujeito, de condicionamentos civilizacionais e moral judaico-cristã, une-nos contra alguém fragilizado. É assim logo na infância, quando um grupo se junta para pontapear um colega no chão ou até, como aconteceu recentemente numa escola em Vimioso, onde uma criança de 11 anos foi sodomizada com uma vassoura perante a não intervenção cúmplice de adultos. É assim no meio empresarial, onde, segundo um estudo realizado pelo Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG), 16,5% da população ativa portuguesa já vivenciou uma situação de assédio moral no trabalho.
A minha cadela Bolota, uma rafeira de Cascais de três anos, vê televisão com muita atenção, como eu nunca tinha visto nenhum dos cães que sempre tive a fazer. Fica fascinada com programas sobre a vida selvagem, não se interessando pela figura humana, talvez por desconhecer, na sua ingenuidade canina, que somos, também nós, capazes de todo o tipo de selvajarias e comportamentos primários. No outro dia, estivemos a assistir juntas a um documentário da BBC onde um leão era cercado por um grupo de hienas junto a um local onde bebia água. As hienas perceberam que estavam em número suficiente para atacar o felino e apertaram o cerco. O ataque das hienas mostrou ao adversário que a força dele “não era documento” e atacaram-no por detrás, como fazem os cobardes, mordendo-o à vez. Embora seja raro um leão poder ser morto por hienas, isso pode acontecer, principalmente quando se tratam de crias ou elementos envelhecidos ou debilitados. Na hierarquia dos predadores felinos, a seguir aos leões, tigres e leopardos, figuram as hienas. Abaixo estão os chacais. A uma distância segura, os chacais acompanham os grandes predadores, à espera das sobras, que dividem com os abutres. Deste comportamento animal podemos tirar muitas semelhanças com os meandros partidários.
Numa reflexão sobre a dinâmica da política e a hierarquia dos predadores na natureza, encontramos paralelos fascinantes. Enquanto no reino animal a ordem é estabelecida por leões, tigres e leopardos, seguidos de perto pelas hienas, na arena política observamos uma estrutura semelhante, com alguns partidos políticos em posição dominante e outros a crescer. Assim, como as hienas assistem de perto às caçadas dos leões, prontas para se aproveitarem das oportunidades, vemos líderes políticos a fazerem o mesmo. A imagem torna-se ainda mais viva se visualizarmos os abutres, representados pelos interesses corporativos e lobbies que se movem nos palcos da política e dos negócios, prontos para se alimentarem das sobras deixadas pelos predadores principais. A política, assim como a natureza, é implacável na sua senda por poder e interesses, em que os mais fracos são deixados à mercê dos mais fortes. A selvajaria na política assemelha-se também a um circo, com palhaços ricos e pobres. Subestimar a sua perigosidade é um erro, pois, tal como os palhaços e ilusionistas se esmeram para desviar a atenção da audiência para fazer manigâncias, os políticos carismáticos conseguem manipular as massas. Tanto na natureza como na política, a sobrevivência e o sucesso são determinados pela habilidade de tirar proveito das circunstâncias. Da mesma forma que um leão pode ser derrubado por uma hiena, um partido político pode ser desafiado por forças que capitalizam fraquezas e dividem para reinar. A vida política e a selvagem compartilham uma verdade essencial: é a astúcia, a resiliência e, pasme-se, por vezes meramente a sorte, que determinam quem sai por cima quando o documentário chega ao fim.
Nós, portugueses, somos os reis dos memes e a desgraça alheia dá-nos vontade de rir. Abrandamos na autoestrada para orçamentar os desastres e a televisão emite há décadas programas com vídeos cómicos de pessoas a cair.