Putin usa ambiguidade estratégica de Macron para semear medo nuclear
No discurso anual aos deputados, com as eleições em pano de fundo, o presidente russo elevou o tom contra o Ocidente a níveis inauditos e distribuiu elogios e promessas à população.
Vladimir Putin optou por não acenar com mais uma fonte de tensão e instabilidade, a Transnístria, e em seu lugar usou a cartada da ameaça nuclear durante o discurso anual do presidente russo às duas câmaras da Assembleia Federal, a Duma e o Conselho. Durante duas horas, o líder russo enalteceu a economia e as capacidades científicas, tecnológicas e militares do país, fez promessas eleitorais e distribuiu as costumeiras críticas ao Ocidente, tendo como pano de fundo as eleições presidenciais daqui a duas semanas.
Dizia o “Dr. Estranho Amor” no clássico homónimo de Stanley Kubrick que “a dissuasão é a arte de produzir na mente do inimigo o de atacar” – um conceito à prova da sátira que reveste o argumento do filme, tendo em conta a advertência do líder russo para o uso de armas nucleares. Não é a primeira vez que Putin recorre a este arsenal. Fê-lo em setembro de 2022, quando a “operação militar especial”, pensada para decapitar o poder democraticamente eleito em Kiev, o obrigou a anunciar uma mobilização militar parcial. “Se a integridade territorial do nosso país for ameaçada, utilizaremos sem dúvida todos os meios disponíveis para proteger a Rússia e o nosso povo. Isto não é um bluff”, disse então num discurso ao país transmitido pela TV. Apesar da ameaça fez-se de vítima, ao alegar que o Ocidente estava a conspirar para destruir o seu país, envolvendo-se em “chantagem nuclear” ao alegadamente discutir a utilização de armas nucleares contra Moscovo. De resto, tem deixado para os comentadores da TV, propagandistas do seu regime, bem como para o vice-presidente do Conselho de Segurança, Dmitri Medvedev, os discursos inflamados sobre o Armagedão. Até ontem. Ao falar sobre a hipótese de forças da NATO serem enviadas para a Ucrânia, Putin avisou sobre as “trágicas consequências” de tal decisão. Os seus comentários serão uma resposta à recusa do presidente francês Emmanuel Macron, no início da semana, de excluir qualquer possibilidade na ajuda à Ucrânia, incluindo o envio de tropas. Apanhados de surpresa, os restantes líderes europeus – à exceção da primeira-ministra da Estónia, Kaja Kallas – que comentaram as declarações, rejeitaram o envio de militares para o país sob invasão. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Stéphane Séjourné, explicou mais tarde que o putativo envio de militares de aliados não seria para combate, mas para missões específicas, como a desminagem ou a ajuda na guerra cibernética, e fontes diplomáticas explicaram que, acima de tudo, é importante manter a ambiguidade estratégica.
Putin recordou o destino das tropas de Napoleão e de Hitler e comentou que os líderes ocidentais, pensam que a guerra “é um desenho animado”. Em contraste, as “forças nucleares estratégicas da Rússia estão num estado de prontidão total”. E não só. Disse que as armas mais modernas da Rússia, como os mísseis hipersónicos Kinzhal e Zircon, tinham sido utilizadas na Ucrânia, enquanto outras, o míssil de cruzeiro nuclear Burevestnik e o drone nuclear Poseidon, estão na fase final de testes, e o míssil balístico intercontinental Sarmat entrou ao serviço das forças nucleares.
Como era esperado, no discurso transmitido na televisão, em ecrãs gigantes e até em cinemas, Putin aproveitou o momento da guerra na Ucrânia para elogiar os militares, cujas “capacidades de combate aumentaram consideravelmente” e agora “mantêm firmemente a iniciativa”, disse. “Estão a avançar com confiança em várias direções operacionais e a libertar cada vez mais novos territórios.”
Jogada a cartada nuclear, Putin optou por ignorar para já a questão da Transnístria, a região da Moldávia que é gerida por pró-russos e que pedira horas antes a “proteção” dos deputados russos em resultado do fim da isenção de taxas alfandegárias decretado pelo Governo moldavo.
Alguns analistas, como os do norte-americano Instituto para o Estudo da Guerra, tinham advertido para a possibilidade de um “acontecimento de grande impacto” relacionado com a Transnístria. Para já, o território, que tem 1600 soldados russos destacados, não apresenta uma ameaça, disse Natalia Humeniuk, porta-voz do comando sul da Ucrânia.
No resto do discurso, perante demedo
“[O Ocidente] tem de compreender que também temos armas que podem atingir alvos no seu território. Tudo isto ameaça de facto um conflito com a utilização de armas nucleares e a destruição da civilização. Será que eles não percebem isso?”
Vladimir Putin Presidente da Federação Russa
putados, mas também militares, oligarcas e apoiantes conhecidos e anónimos, Putin acusou o Ocidente de tentar travar o desenvolvimento do seu país e que o objetivo era o de arrastar a Rússia para a decadência, mas falhou, tal como “tenta arrastar” o país para uma “corrida ao armamento”.
O discurso serviu igualmente para as audiências internas. O presidente russo elogiou os “séculos de unidade” do povo russo que criaram uma força invencível e que hoje a Rússia é um “pilar da democracia”. Uma democracia que, sob o seu comando, não permitirá ninguém a interferir nos seus assuntos internos, disse. O seu maior adversário dos últimos anos, Alexei Navalny, é enterrado hoje, duas semanas depois de ter morrido na colónia penal no Ártico em que cumpria uma longa pena de prisão. Nenhum dos adversários admitidos às eleições presidenciais está contra a guerra na Ucrânia nem é, na realidade, um opositor político.
Aproveitando o momento de crescimento da economia para prever que o país irá tornar-se na quarta maior do mundo, anunciou uma série de medidas para as famílias jovens deve ser dada especial atenção às famílias jovens, reduzindo os impostos em especial para quem tenha um terceiro filho.
Para aumentar a esperança de vida da população, de 73 anos para 78 até 2030, Putin recuperou um lema da era soviética (“Deixem de beber, comecem a esquiar”).