“Massacre” ou “atropelamentos”? Mais de cem mortos na entrega de ajuda em Gaza
Hamas alega que soldados israelitas dispararam contra a multidão, mas Israel diz que as pessoas se empurraram e atropelaram e só disparou contra quem ameaçou militares. Presidente dos EUA diz que o incidente vai complicar negociações para o cessar-fogo.
Pelo menos 112 pessoas morreram e 760 ficaram feridas na Faixa de Gaza, em incidentes com camiões de ajuda humanitária. As autoridades do enclave, controladas pelo Hamas, acusaram os militares israelitas de dispararem contra a multidão de civis que esperava a distribuição da ajuda, com o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Autoridade Palestiniana a denunciar um “massacre atroz”.
Mas as Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) atribuíram oficialmente as mortes aos “empurrões” e “atropelamentos” das pessoas que “cercaram os camiões” e “saquearam” a ajuda. E só admitiram ter disparado contra dezenas de pessoas que se aproximaram de forma ameaçadora de um posto de controlo, a centenas de metros de distância do outro incidente, assumindo a responsabilidade apenas por uma dezena de vítimas.
“O ataque foi premeditado e intencional, no contexto do genocídio e da limpeza étnica do povo da Faixa de Gaza. O Exército de ocupação sabia que estas vítimas tinham vindo para esta zona para obter alimentos e ajuda, mas matou-as a sangue frio”, acusou o Hamas, cujo ataque terrorista de 7 de outubro, durante o qual cerca de 1200 pessoas terão morrido, desencadeou a ofensiva israelita.
Avi Hyman, porta-voz do governo de Benjamin Netanyahu, não comentou a parte dos tiros. “Em algum momento, os camiões ficaram rodeados e as pessoas que conduziam os camiões, que eram motoristas civis de Gaza, atacaram a multidão, matando, no meu entender, dezenas de pessoas”, afirmou. “É obviamente uma tragédia, mas não temos a certeza ainda dos pormenores”, acrescentou. Um inquérito foi aberto.
As IDF divulgaram imagens, filmadas por drones, dos acontecimentos durante a madrugada, nas quais são percetíveis centenas de pessoas a rodearem os vários camiões. Não há sinal dos disparos. Mas noutros vídeos, publicados pela Al Jazeera em árabe, filmados alegadamente no terreno, ouvem-se os tiros.
O ministro da Segurança Nacional israelita, Itamar Ben-Gvir, de extrema-direita, defendeu que o incidente “é outra razão clara para parar de transferir ajuda” para o enclave palestiniano.
“Hoje ficou provado que a transferência de ajuda humanitária para Gaza não apenas é uma loucura enquanto os nossos reféns estiverem no enclave, mas também põe em risco os soldados israelitas”, escreveu no X (antigo Twitter), considerando que esta ajuda é “oxigénio para o Hamas”.
O Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca disse, em comunicado, “lamentar a perda de vidas inocentes” e reconheceu “a terrível situação humanitária em Gaza, onde palestinianos inocentes estão apenas a tentar alimentar as suas famílias”. Falou num “incidente sério”, dizendo que “sublinha a importância de expandir e sustentar o fluxo de assistência humanitária para Gaza, inclusive através de um potencial cessar-fogo temporário”.
No início da semana, o presidente norte-americano, Joe Biden, disse acreditar que um cessar-fogo estava para breve, provavelmente na segunda-feira. Algo que tanto Israel como o Hamas rejeitaram. Ontem, questionado de novo pelos jornalistas, Biden lembrou que “a esperança é eterna”, mas admitiu que provavelmente o cessar-fogo não será para segunda-feira. E admitiu que o incidente com a entrega de ajuda humanitária vai complicar as negociações: “Eu sei que vai.”
Netanyahu, em declarações ontem à noite aos jornalistas, disse que ainda era demasiado cedo para saber se é possível um acordo nos próximos dias. O primeiro-ministro israelita reiterou contudo que não irá cumprir as exigências “delirantes” do Hamas.
O subsecretário-geral das Nações Unidas para as questões humanitárias, Martin Griffiths, reagiu no X, dizendo que “a vida está a escoar-se de Gaza a uma velocidade assustadora” – o Conselho de Segurança da ONU ia reunir ontem de emergência para discutir o incidente. O responsável escreveu que “mesmo depois de quase cinco meses de hostilidades brutais, Gaza ainda tem a habilidade de nos chocar”, dizendo-se “chocado” com as mortes na entrega de ajuda humanitária no dia em que o número de vítimas mortais no enclave palestiniano ultrapassou a marca das 30 mil.
As autoridades de Gaza, controladas pelo Hamas, anunciaram ontem que 30 139 corpos foram registados nos hospitais desde o início da ofensiva israelita. Segundo a contabilidade oficial palestiniana, 13 230 mortos em Gaza eram crianças, incluindo sete que morreram à fome. O balanço inclui ainda 8860 mulheres e 132 jornalistas, mas não as cerca de sete mil pessoas dadas como desaparecidas.