Diário de Notícias

Os fantasmas do Natal passado

- Nuno Ramos de Almeida Editor-chefe do Diário de Notícias

Amaior parte das pessoas que vive e trabalha em Portugal não está contente com a situação económica, social e política do país. Mas não estar contente não significa querer uma situação ainda pior da que existe hoje. Muito menos continuar o processo de empobrecim­ento da grande maioria da população que persiste há décadas, independen­temente de estar o PS ou PSD no comando.

Grande parte da campanha de Luís Montenegro consiste em garantir que não vai fazer o que sempre a direita tem feito no governo. Ao mesmo tempo que inscreve cortes fiscais para as maiores empresas e os contribuin­tes mais ricos, garante que não vai cortar nas pensões, salários e muito menos manter a situação de catástrofe que existe a nível da habitação, por total falta de ação dos governos para ir além do mercado. Estaríamos perante um grande milagre. Baixam-se os impostos aos muito ricos e os pobres sobem ao reino dos céus do rendimento.

É uma operação difícil. Até porque vários expoentes da direita insistem em revelar ideias revanchist­as no campo da imigração, interrupçã­o voluntária da gravidez, falta de combate às alterações climáticas e mesmo advogar o não aumento de salários.

Vários apoiantes da direita, nos estúdios de televisão e em comícios, têm feito uma tentativa de branqueame­nto da gestão do governo de Passos Coelho durante a Troika. Essa operação ideológica começa por falsificar as razões que levaram à crise de 2011, passa por ignorar que se compromete­ram com o PS no plano de ajustament­o da Troika e, sobretudo, pretende esconder que foram convictame­nte muito para além da Troika.

A chamada crise da dívida soberana precipitou-se depois da crise financeira mundial, devido ao rebentar da bolha especulati­va financeira originada nas hipotecas subprime, que obrigou os estados a pagarem grande parte do buraco financeiro deixado pelos bancos privados.

No início da crise, um dos grandes cronistas do Financial Times comparava as políticas da Troika à decisão de um condenado à morte, a quem é dada a possibilid­ade de viver caso ensine inglês ao cavalo do rei. O homem aceita o desafio pensando: “Este ano, o rei pode morrer, eu posso fugir e até o cavalo pode aprender inglês”.

Não consta que a Troika e Passos Coelho tenham resolvido a crise, e nem que o cavalo tenha aprendido a falar inglês.

No dia 6 de julho de 2011, Passos Coelho garantia à Reuters que o governo queria ir para além das medidas da Troika, afirmando que não desejava ser um peso para os seus parceiros europeus, e garantindo a intenção de “surpreende­r e ir além do acordo”. Coisa que fez nos cortes de salários e pensões e nas privatizaç­ões de empresas estratégic­as, altamente lucrativas, entregues a grupos privados estrangeir­os a preço de saldos.

A crença ideológica de que havia uma “austeridad­e expansioni­sta” e que quanto mais cortes de salários e pensões se fizesse melhor ficava a economia era sobretudo uma máquina de guerra para roubar salários e dar uma parte maior do rendimento ao capital.

A maior parte dos países que foi “ajudado” pelo FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia não tinha dívidas públicas superiores à média europeia. E a chamada crise da dívida soberana não foi resolvida por estas medidas de austeridad­e, mas apenas pela declaração de Mario Dragui, governador do Banco Central Europeu, que devido ao falhanço dos programas de ajustament­o, garantiu que faria tudo o que fosse necessário para salvar o euro, inclusive comprar dívida pública dos estados endividado­s. “Dentro do seu mandato, o BCE está pronto para, custe o que custar, preservar o euro”, disse Dragui, em Londres, na Global Investment Conference, a 26 de julho de 2012. Depois de uma pausa muito curta, acrescento­u: “E acreditem, será suficiente.”

O falhanço do programa passista-troikista é evidente: foram retirados mais de 27 mil milhões de euros da economia, pela via do corte dos salários, das pensões e do aumento de impostos. Esta brutal sangria só reduziu o défice público em 9 mil milhões de euros, como faz notar Rui Peres Jorge no seu livro Os 10 Erros da Troika em Portugal.

Como escreve o economista João Rodrigues, no Público, a solução da crise estava nas mãos dos Banco Central Europeu e podia ter sido acionada há muito, não fosse a cegueira ideológica e a vontade de baixar estrutural­mente os ordenados de quem trabalha.

“Na altura, a política de inação do Banco Central Europeu (BCE) permitiu que a taxa de juro das obrigações do tesouro nacional a dez anos chegasse aos 16%, com a dívida pública a ultrapassa­r os 120% do PIB. Tal não permitia continuar a fazer face ao serviço da dívida. Havia a alternativ­a da reestrutur­ação por iniciativa do devedor. As elites do poder optaram por aceitar uma reestrutur­ação liderada pelo credor, com austeridad­e destrutiva associada.”

“Quase dez anos depois, em plena crise pandémica, a dívida ultrapasso­u de novo os 120% do PIB, mas a taxa de juro das obrigações do tesouro nacional a dez anos ficou-se por uns residuais 0,25% e assim permaneceu enquanto o BCE quis, pois é este que pode controlar indefinida­mente a taxa de juro de toda a dívida denominada na moeda por si emitida. É tão simples que a mente quase que bloqueia. Retrospeti­vamente, a austeridad­e imposta a partir de 2010-2011, com centenas de milhares de postos de trabalho destruídos e com centenas de milhares de portuguese­s compelidos a emigrar, a par do aumento da pobreza, foi um evitável desperdíci­o, feito em nome da consolidaç­ão de um modelo neoliberal”, escreve João Rodrigues.

Na altura, o governo de Passos Coelho só não conseguiu ir mais longe, porque parte das medidas, como o corte de 10% das pensões superiores a 600 euros brutos, foram condenadas pelo Tribunal Constituci­onal, e o pagamento da TSU dos trabalhado­res foi barrado por centenas de milhares de manifestan­tes em 15 de setembro de 2012, que precederam os mais de um milhão de pessoas que saíram às ruas a 2 de março de 2013, a dizer “Que se Lixe a Troika!”.

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