João Teixeira Lopes “A permanência das desigualdades demonstra um país que não está a funcionar”
O sociólogo é coautor, com a ex-deputada Catarina Martins, do livro Portugal Esquecido – Retratos de um País Desigual. Composto por cerca de 100 testemunhos, aborda temas como a saúde, a habitação, o trabalho, as minorias, a desertificação do interior e o
Como surgiu a ideia de escrever estelivro?
A ideia já germinava há algum tempo porque parecia-me fundamental fazer uma espécie de atlas do sofrimento social em Portugal. Aproveitei o facto de a Catarina Martins ter deixado o parlamento e desafiei-a. Isto para unir duas redes complementares: a rede de contactos que a Catarina traz do seu ativismo político durante vários anos, que abre muitas portas e permite muito conhecimento de várias situações; e a minha rede, que é de investigação e pesquisa. Juntaram-se estas duas redes, uma equipa vasta e este vivo desejo de conhecer as situações de que sefal apouco naquilo queéa esfera pública. Pode falar-me um pouco dessas situações?
Sem dúvida. Vou dar alguns exemplos, porque isso ajuda imenso a entender estas temáticas. Por exemplo, as pessoas que vivem da caridade ou da assistência social. As pessoas sem-abrigo. Os jovens que vivem em bairros sociais. Os nepaleses que moram em Arroios. Mulheres migrantes brasileiras. Cuidadores informais. Depois, as questões da habitação, que afetam diferentes grupos de forma distinta. Há muitas situações, muitos casos. E nós tentamos abordá-los de uma maneira que não seja abstrata, porque fizemos mais de 100 entrevistas. Qual a importância de apresentar essasentrevistas?
Esses depoimentos são uma interpelação muito coloquial e muito vivida para o leitor. E permitem ao leitor fazer a sua própria interpretação das situações. Otí tu loé Portugal Esquecido, o pós-títuloRetratos de um País Desigual. Querexplicá-los?
Há questões que são transversais a todos os entrevistados. Uma delas é, precisamente, sermos um país de profundas desigualdades. Os problemas abordados no livro são antigos. São endémicos, em Portugal?
A permanência das desigualdades, de facto, demonstra um país que não está a funcionar. As questões estruturais do país mantêm-se com uma aguda persistência, o que quer dizer também que não basta fazer mais do mesmo. É preciso sermos mais ousados, mais exigentes, naquilo que se espera para resolver estas desigualdades. Veja-se o que se passa com a habitação: é evidente que não basta um conjunto de remendos. É preciso construir mais, haver oferta pública de habitação. É uma exigência de que sejamos capazes de fazer melhor. Quando os problemas são radicalmente intensos temos de ser mais exigentes na sua resolução. Aha bit açãoéumdi rei toque está atribuído na Constituição. No entanto, hoje muitaspessoas não conseguem acedera uma habitação. Comoexplicaristo? É verdade, nos eu artigo 65. Istoé uma questão que afeta muito aquelas pessoas que trabalham imenso, mas ganham salários muito baixos. Há, no livro, depoimentos sobre a habitação que são tremendos. Porque algumas pessoas que pertencem ao que poderíamos chamar, para facilitar, classes médias urbanas escolarizadas, revelam medo de virem a resvalar para uma trajetória de sem-abrigo. São pessoas que dizem, genuinamente, que têm medo de amanhã não terem uma casa. A obra apresenta propostas para o futuro do país. Pode falar delas? São um conjunto de propostas baseadas nos casos, nada disto é abstrato. Falamos de pessoas que vivem em situação de pobreza intensa, mesmo trabalhando, e propomos que se simplifique, havendo, por exemplo, uma única prestação social para quem está em situação de pobreza. Dou-lhe outro exemplo: quando referimos uma aldeia que não tem, praticamente, acesso a água, no Alentejo. Nós fazemos uma série de propostas no âmbito da política agrícola, florestal e até sobre soberania alimentar. A partir dos casos fazemos propostas para discussão. De todas as questões abordadas qual será amais difícil de resolver? São todas muito difíceis porque exigem uma reorientação forte das políticas públicas. Exigem investimento público. E também coragem política. Mas houve uma situação que me tocou imenso, que tem a ver com os internamentos sociais. Idosos que vão parar ao hospital têm alta médica e não têm quem os vá buscar. Esses idosos ocupam camas no SNS que são um custo, são milhões de euros. Estas pessoas até estão bem, mas com o tempo que passam no hospital vão perdendo capacidades e tornando-se dependentes. No final vão parar a 300 quilómetros de distância, no único lar que as assistentes sociais conseguem arranjar, porque não há uma rede de cuidados continuados e paliativos. Isto é o que eu chamo de “morte social”. E é algo que me entristeceu imenso e que deixa assistentes sociais e médicos altamente desesperados. Acreditaque,nofuturo,serápossívelhaver“apaz,opão,ahabitação, saúdeeeducação”paratodos, comodizacançãodeSérgioGodinho?
Os tempos não vão de feição a que isso se concretize. Há hoje uma virada na política europeia. E, pior do que isso, no senso comum, nas ideias que as pessoas têm, que tende a valorizar mais a experiência individual e a competição. Tudo isto são ingredientes nocivos para a resolução desses problemas.
“Há questões que são transversais a todos os entrevistados. Uma delas é sermos um país de profundas desigualdades. (...) Quando os problemas são radicalmente intensos temos de ser mais exigentes na sua resolução.”