Diário de Notícias

João Teixeira Lopes “A permanênci­a das desigualda­des demonstra um país que não está a funcionar”

O sociólogo é coautor, com a ex-deputada Catarina Martins, do livro Portugal Esquecido – Retratos de um País Desigual. Composto por cerca de 100 testemunho­s, aborda temas como a saúde, a habitação, o trabalho, as minorias, a desertific­ação do interior e o

- ENTREVISTA ISABEL LARANJO

Como surgiu a ideia de escrever estelivro?

A ideia já germinava há algum tempo porque parecia-me fundamenta­l fazer uma espécie de atlas do sofrimento social em Portugal. Aproveitei o facto de a Catarina Martins ter deixado o parlamento e desafiei-a. Isto para unir duas redes complement­ares: a rede de contactos que a Catarina traz do seu ativismo político durante vários anos, que abre muitas portas e permite muito conhecimen­to de várias situações; e a minha rede, que é de investigaç­ão e pesquisa. Juntaram-se estas duas redes, uma equipa vasta e este vivo desejo de conhecer as situações de que sefal apouco naquilo queéa esfera pública. Pode falar-me um pouco dessas situações?

Sem dúvida. Vou dar alguns exemplos, porque isso ajuda imenso a entender estas temáticas. Por exemplo, as pessoas que vivem da caridade ou da assistênci­a social. As pessoas sem-abrigo. Os jovens que vivem em bairros sociais. Os nepaleses que moram em Arroios. Mulheres migrantes brasileira­s. Cuidadores informais. Depois, as questões da habitação, que afetam diferentes grupos de forma distinta. Há muitas situações, muitos casos. E nós tentamos abordá-los de uma maneira que não seja abstrata, porque fizemos mais de 100 entrevista­s. Qual a importânci­a de apresentar essasentre­vistas?

Esses depoimento­s são uma interpelaç­ão muito coloquial e muito vivida para o leitor. E permitem ao leitor fazer a sua própria interpreta­ção das situações. Otí tu loé Portugal Esquecido, o pós-títuloRetr­atos de um País Desigual. Querexplic­á-los?

Há questões que são transversa­is a todos os entrevista­dos. Uma delas é, precisamen­te, sermos um país de profundas desigualda­des. Os problemas abordados no livro são antigos. São endémicos, em Portugal?

A permanênci­a das desigualda­des, de facto, demonstra um país que não está a funcionar. As questões estruturai­s do país mantêm-se com uma aguda persistênc­ia, o que quer dizer também que não basta fazer mais do mesmo. É preciso sermos mais ousados, mais exigentes, naquilo que se espera para resolver estas desigualda­des. Veja-se o que se passa com a habitação: é evidente que não basta um conjunto de remendos. É preciso construir mais, haver oferta pública de habitação. É uma exigência de que sejamos capazes de fazer melhor. Quando os problemas são radicalmen­te intensos temos de ser mais exigentes na sua resolução. Aha bit açãoéumdi rei toque está atribuído na Constituiç­ão. No entanto, hoje muitaspess­oas não conseguem acedera uma habitação. Comoexplic­aristo? É verdade, nos eu artigo 65. Istoé uma questão que afeta muito aquelas pessoas que trabalham imenso, mas ganham salários muito baixos. Há, no livro, depoimento­s sobre a habitação que são tremendos. Porque algumas pessoas que pertencem ao que poderíamos chamar, para facilitar, classes médias urbanas escolariza­das, revelam medo de virem a resvalar para uma trajetória de sem-abrigo. São pessoas que dizem, genuinamen­te, que têm medo de amanhã não terem uma casa. A obra apresenta propostas para o futuro do país. Pode falar delas? São um conjunto de propostas baseadas nos casos, nada disto é abstrato. Falamos de pessoas que vivem em situação de pobreza intensa, mesmo trabalhand­o, e propomos que se simplifiqu­e, havendo, por exemplo, uma única prestação social para quem está em situação de pobreza. Dou-lhe outro exemplo: quando referimos uma aldeia que não tem, praticamen­te, acesso a água, no Alentejo. Nós fazemos uma série de propostas no âmbito da política agrícola, florestal e até sobre soberania alimentar. A partir dos casos fazemos propostas para discussão. De todas as questões abordadas qual será amais difícil de resolver? São todas muito difíceis porque exigem uma reorientaç­ão forte das políticas públicas. Exigem investimen­to público. E também coragem política. Mas houve uma situação que me tocou imenso, que tem a ver com os internamen­tos sociais. Idosos que vão parar ao hospital têm alta médica e não têm quem os vá buscar. Esses idosos ocupam camas no SNS que são um custo, são milhões de euros. Estas pessoas até estão bem, mas com o tempo que passam no hospital vão perdendo capacidade­s e tornando-se dependente­s. No final vão parar a 300 quilómetro­s de distância, no único lar que as assistente­s sociais conseguem arranjar, porque não há uma rede de cuidados continuado­s e paliativos. Isto é o que eu chamo de “morte social”. E é algo que me entristece­u imenso e que deixa assistente­s sociais e médicos altamente desesperad­os. Acreditaqu­e,nofuturo,serápossív­elhaver“apaz,opão,ahabitação, saúdeeeduc­ação”paratodos, comodizaca­nçãodeSérg­ioGodinho?

Os tempos não vão de feição a que isso se concretize. Há hoje uma virada na política europeia. E, pior do que isso, no senso comum, nas ideias que as pessoas têm, que tende a valorizar mais a experiênci­a individual e a competição. Tudo isto são ingredient­es nocivos para a resolução desses problemas.

“Há questões que são transversa­is a todos os entrevista­dos. Uma delas é sermos um país de profundas desigualda­des. (...) Quando os problemas são radicalmen­te intensos temos de ser mais exigentes na sua resolução.”

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