David Bordwell no país das narrativas
Historiador, investigador e ensaísta, figura central nos estudos sobre cinema do último meio século, o americano David Bordwell faleceu no dia 29 de fevereiro – contava 76 anos. Autor de inúmeros livros e artigos, muitos deles disponíveis no seu site oficial [davidbordwell.net], professor da Universidade de Wisconsin-Madison, colaborador regular das edições em DVD da coleção Criterion, Bordwell foi um estudioso e amante da complexidade das narrativas.
Importa, aliás, sublinhar a pluralidade da sua visão, quanto mais não seja porque à nossa volta triunfou uma noção pueril de “narrativa”, favorecendo um violento revanchismo cultural. Assim, os contrastes da história e da arte de contar histórias, de Homero a Martin Scorsese, passando por Balzac, Tchekov ou Godard, tendem a ser descartados, substituídos pelo infantilismo televisivo do “verdadeiro” e do “falso”: narrar seria apenas escolher duas faces de uma mesma moeda, pertencendo ao analista/comentador o poder radical e, sobretudo, inquestionável de proteger o comum dos mortais numa selva de significações maniqueístas.
Lembremos, por isso, o humor de Bordwell, na certeza de que o riso é uma das poucas armas que (ainda) nos resta para resistirmos à formatação política do quotidiano – e à quotidiana formatação da política. Na introdução a um dos seus livros mais célebres, Narration in the Fiction Film (University of Wisonsin Press, 1985), dedicado a Jacques Ledoux, primeiro diretor da Cinemateca Real da Bélgica, Bordwell começa por evocar uma deliciosa anedota:
“Um inglês e um americano encontraram-se a caminhar num deserto. O britânico transportava um balde com água; o americano levava a porta de um carro. Um ao lado do outro, arrastaram-se ao longo de muitas milhas, com o inglês a olhar, confundido, para o seu companheiro. A certa altura, o inglês parou e perguntou: “Desculpe, mas porque é que leva essa porta?”
“Já lhe digo”, respondeu o americano, “se me disser porque é que leva esse balde.”
“Muito simples”, disse o inglês. “Quando fico com calor, uso um pouco de água e refresco o rosto.”
“Ah”, respondeu o americano, “eu quando fico com calor, baixo o vidro da janela.”
Que acontece, então? “Uma anedota é habitualmente uma narrativa”. De tal modo que, diz Bordwell, nela podemos encontrar dois níveis fundamentais: a representação (de personagens e contextos específicos) e a estrutura (uma determinada construção das partes que, idealmente, formarão um todo que algum destinatário irá receber, porventura interpretar).
Qualquer narrativa sugere, canaliza ou impõe significados e significações que a dicotomia verdade/mentira, mesmo quando aplicável, está longe de esgotar. Na cena política, por exemplo, observe-se o desenho mediático do território ideológico a partir de uma fronteira, supostamente estável e unívoca, entre “esquerda” e “direita” – há até forças políticas que todos os dias demonizam os parceiros da mesma área, ao mesmo tempo que proclamam que só uma aliança com tais parceiros poderá garantir o futuro radioso do país. Ou ainda, no futebol, a curiosa proliferação narrativa do conceito de “sofrimento”: há jogadores que ganham num mês mais do que muitos cidadãos recebem durante uma vida inteira de trabalho mas, apesar disso, confessam-se marcados por um “sofrimento” que, além do mais, os sujeita a uma pressão “mental” que o cidadão comum, na sua insignificância, não poderá conhecer.
Se há herança preciosa a reter do labor multifacetado de Bordwell, os seus valores decorrem, justamente, desse reconhecimento dialético: viajar pelo país das narrativas não é abandonar a vida concreta que, mal ou bem, partilhamos, mas embrenharmo-nos ainda mais nos seus caminhos cruzados, tentando compreender tudo aquilo que nos aproxima ou afasta do(s) outro(s). Na introdução à antologia Poetics of Cinema (Routledge, 2007), Bordwell resume exemplarmente tal postura: “Há pessoas que me veem como um teórico, e creio que o sou até certo ponto, mas tentei sempre manter a reflexão teórica ligada aos factos concretos do cinema – os filmes e a sua experiência como parte de um processo histórico.”
Daí que, com idêntica agilidade, o encontremos a sublinhar a importância emocional da profundidade de campo no Persona (1966), de Ingmar Bergman, ou a reconhecer a revolução iconográfica do Parque Jurássico (1993), de Steven Spielberg. Neste caso, em particular, num artigo publicado na revista Art Forum (setembro 2012), Bordwell sugeria mesmo que o tratamento digital das imagens, “tecnologia definidora do século XXI”, estava, inesperadamente, a conduzir o cinema “de regresso às suas origens pré-fotográficas”. O título desse artigo tem tanto de científico como de poético: “O nosso futuro pré-histórico”.
Mais do que nunca, a herança de David Bordwell ajuda-nos a pensar o nosso mundo de muitas imagens.