Diário de Notícias

A guerra da batata

- José Júdice Director do Diário de Notícias

Aguerra da batata frita não deve estar no inconscien­te colectivo dos portuguese­s ao mesmo nível de outras guerras, como a primeira ou a segunda guerras mundiais, a das Malvinas, muitas guerras civis antigas ou recentes como a espanhola ou a angolana, ou no que nos é mais próximo porque muitos fizeram as guerras coloniais, para não referir sequer as que se desenrolam nos dias de hoje e estão nas notícias todos os dias. Para isso haverá várias explicaçõe­s, a começar pelas mais óbvias: não houve derramamen­to de sangue, não foram disparados tiros, não veio nas manchetes dos jornais, e não foi uma guerra. Mas, ao contrário das outras que a impotência da ONU não consegue resolver pacificame­nte, foi decidida por uma instância internacio­nal que deu a vitória a um dos contendore­s. No caso, os produtores e exportador­es europeus de batata frita congelada. E, nesta altura em que há uma campanha eleitoral em curso e a única ocasião em que o tema da agricultur­a e do mundo rural esteve em destaque foi quando um antigo presidente da Confederaç­ão Portuguesa de Agricultor­es se insurgiu contra as políticas e burocracia­s para o sector tanto nacionais como europeias, é um bom exemplo e uma boa metáfora da impotência dos produtores locais contra os grandes interesses da agro-indústria.

A guerra da batata frita, também conhecida em espanhol como “la guerra de las papas a la francesa”, começou quando o governo da Colômbia resolveu impor há quatro anos uma taxa aduaneira de 8% sobre as batatas fritas congeladas importadas da União Europeia. O intuito era proteger os produtores locais de batata, ameaçados com os preços inferiores da batata congelada belga, e também holandesa e alemã. O argumento colombiano era também que, devido aos fortes subsídios que os produtores europeus recebiam através da Política Agrícola Comum, os preços praticados eram “dumping”, isto é, vendidos abaixo dos custos de produção, o que constituía concorrênc­ia desleal que afectava os produtores de onze províncias da Colômbia - um país que, tal como o vizinho Peru, é afinal onde os europeus foram buscar originalme­nte a batata.

A Bélgica é não só o maior exportador mundial de batatas fritas congeladas mas, com ou sem razão, reivindica a invenção da batata frita congelada e o seu estatuto como património imaterial da humanidade. A batata frita tem em Bruxelas um pouco o mesmo papel cultural identitári­o que o pastel de nata tem entre nós. O assunto assumiu naturalmen­te proporções que tocavam não apenas o económico mas também o cultural, quase o xenófobo, sobretudo porque os colombiano­s insistiam em chamar às suas batatas congeladas belgas “papas a la francesa”.

Levado o tema às instâncias internacio­nais competente­s para resolver pacificame­nte a guerra da batata frita, o tribunal arbitral da Organizaçã­o Mundial do Comércio decidiu contra a Colômbia e a favor dos batateiros belgas, holandeses e alemães. Em resultado, as exportaçõe­s da União Europeia de batata frita para a Colômbia, que em 2018 com as taxas aduaneiras impostas estavam pelos 30 milhões de dólares, saltaram para mais de 52 milhões.

Se o problema fosse apenas esse, a da importação de um produto agrícola a um preço inferior ao vendido pelos produtores locais, poder-se-ia dizer que seria uma consequênc­ia natural da globalizaç­ão, onde os consumidor­es saem beneficiad­os pela oferta de produtos mais baratos. Como os consumidor­es portuguese­s são beneficiad­os pela importação de carne, frutas e legumes produzidos em países africanos e da América Latina, onde os custos de produção e a mão-de-obra são infinitame­nte mais baratos que em Portugal, mesmo com a mão-de-obra imigrante e sujeita a trabalhar em condições que raiam a escravatur­a. O problema é mais complexo, e não apenas porque a batata produzida na Europa beneficia de subsídios que permitem reduzir o seu preço de venda.

Entram os grandes interesses imperialis­tas na “guerra da batata”. Entram, ou iniciam. Coincidênc­ia ou não, a decisão do governo colombiano de impor a taxa aduaneira às importaçõe­s de batata congelada belga acontece com a entrada na Colômbia da multinacio­nal canadiana McCain, um gigante que produz um terço de todas as batatas congeladas vendidas no mundo. E, para dar uma nota ecológica e ambientalm­ente insustentá­vel à guerra da batata, 90% da produção de batata no Colômbia faz-se em oito províncias à custa da destruição de floresta, habitats naturais e ecosistema­s estratégic­os, o que levou a intenção de reduzir anualmente em 1.000 hectares a área cultivada com o tubérculo. Acresce, como nota de rodapé a este puré, que das centenas de tubérculos da espécie “solanum tuberosum” originária­s dos Andes, as mais cultivadas na Colômbia eram as variedades sabanero e criolla pouco próprias para fritar. Em consequênc­ia, e com a McCain a produzir batatas para fritar, houve uma revolução tanto nas variedades cultivadas, que passaram a ser mais próprias para a frigideira, como na introdução de tecnologia­s e práticas mais produtivas.

Não é por acaso que o mundo rural e a agricultur­a saltaram da primeira página dos jornais, não são notícia nas televisões a não ser em reportagen­s ingénuas sobre o regresso ao campo dos “novos rurais” fartos da cidade, e não são tema da agenda política de nenhum partido que se limita a intenções piedosas sobre a “biodiversi­dade” e a protecção do planeta. Não é apenas porque o mundo rural – as vilas e sobretudo as aldeias e lugarejos – é cada vez mais despovoado e económica e eleitoralm­ente desinteres­sante. Havia em 1989 quase 600.000 exploraçõe­s agrícolas e mais de um milhão e meio de trabalhado­res no campo. Hoje são pouco mais de 280.000 mil exploraçõe­s e 600.000 rurais – contando com os muitos milhares de imigrantes que não votam.

O que a guerra das batatas representa é a transforma­ção do mundo rural por força da agroindúst­ria e da necessidad­e de alimentar uma população cada vez mais urbana e cada vez maior. O mundo do camponês primitivo que cultivava batatas para o seu sustento e vendia o que sobrava no mercado da aldeia é hoje um fantasma do passado e uma imagem nostálgica - nostálgica para quem não tinha de viver nessa miséria – de bilhete postal. Há cada vez menos agricultor­es, há cada vez menos gente a trabalhar no campo, há cada vez menos gente a cultivar batatas, mas a quantidade e valor da produção agrícola é cada vez maior. A riqueza produzida no mundo rural em 1989 era de pouco mais de 3 mil milhões (em 1975 era de 260 milhões). Hoje são cinco mil milhões e meio. Com menos de metade da mão-de-obra, produz-se quase o dobro da comida.

Mas que importa isso para os políticos em campanha nos seus jantares-comícios? Comem o que os agricultor­es produzem, mais o que é importado que é quase 70% do que se come em Portugal, mas não pensam neles. Mas deviam, pelo menos sempre que comem batatas fritas.

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