Diário de Notícias

“Há um ano Trump não parecia inevitável”

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Daniela Melo é professora de Ciência Política na Universida­de de Boston e não espera grandes surpresas da votação na Super Tuesday deste ciclo eleitoral. Ainda assim, aponta para alguns elementos a que devemos estar atentos e podem ajudar a perceber o rumo deste combate presidenci­al – que, tudo indica, será uma repetição de Joe Biden contra Donald Trump, os dois candidatos mais velhos de sempre a ocuparem a Casa Branca.

O que é que torna a Super Terça-feira importante no processo das primárias?

É o dia em que mais estados vão a votos. É um número muito elevado de estados, 15, com imensos delegados – entre eles está, por exemplo, a Califórnia – e os resultados determinam a distribuiç­ão de delegados. É mais ou menos um terço do total, uma fatia muito grande que é distribuíd­a num só dia. Geralmente, os resultados da Super Tuesday já nos dizem muito sobre quem será o nomeado por cada partido.

E já é assim há muito tempo?

Já há décadas que a Super Tues-day existe, assim chamada desde os Anos 70. Cada partido decide por que ordem vai cada estado e historicam­ente houve grandes mudanças. Em geral, isso tinha a ver com querer influencia­r a escolha do presidente. Ou seja, se quem vai primeiro são os estados conservado­res ou menos conservado­res, mais alinhados com certos assuntos ou menos.

“Havia muitas dúvidas sobre se o partido continuari­a tão ligado a Trump. Sabia-se que havia uma fatia do eleitorado que era devota, que nunca abandonari­a Trump, mas não parecia um candidato assim tão óbvio. E nos últimos meses isso dissipou-se, em parte porque a competição deu alguns tiros no próprio pé.”

Cientista política da Universida­de de Boston

Por que é que este ano não há tanto furor? No histórico recente houve primárias em que a Super Terça-feira foi decisiva. O próprio Biden não tinha a nomeação assegurada quando lá chegou em 2020.

Não, assegurada, nem de perto. Ele ainda não tinha ganho em nenhum estado até chegar à Super Tuesday. Foi a sua grande vitória na Carolina do Sul que realmente o relançou como o candidato que tinha mais potencial para vencer a nomeação. A Super Tuesday é mais animada quando há muitos candidatos e é absolutame­nte decisiva, presta-se muito mais atenção do que quando temos um incumbente. Neste caso, temos quase dois incumbente­s. Por um lado temos um incumbente, por outro temos um ex-presidente que acredita que devia ser incumbente.

Então o que é que está em jogo desta vez, não havendo o mesmo nível de incerteza que em anos anteriores?

Não está muito em jogo, para ser honesta. As sondagens que temos mostram que, do lado republican­o, Trump continua a liderar. A única surpresa que poderá haver é se Haley surpreende­r em alguns estados e conseguir ganhá-los – uma Califórnia ou Massachuse­tts. Mas parece bastante improvável, dadas as sondagens que temos até agora.

Como é que ela poderia fazer isso?

A melhor esperança que Haley tem é de formar a mesma coligação que conseguiu em New Hampshire, nalguns dos Estados que permitem que os eleitores independen­tes votem. Temos vários Estados onde os eleitores independen­tes podem chegar às urnas e escolher se querem o boletim democrata ou o republican­o e votarem em quem quiserem. Portanto, há mais probabilid­ades de reunir aquela mesma coligação de independen­tes, de conservado­res moderados, de democratas mais conservado­res que conseguiu em New Hampshire. Ela tem trabalhado incansavel­mente e vai continuar a viajar, a saltar de estado em estado.

Esta Super Tuesday é o tudo ou nada dela? Provavelme­nte, mas não sabemos. Ela pode querer ficar. Se não ganhar nenhum Estado, há cada vez mais pressão para que abandone a corrida e deixe que tanto o partido, como Trump, se possam focar só na eleição geral. Mas a matemática ainda não funciona para Trump. Na terça-feira estarão atribuídos 1151 delegados de 2429 possíveis. Não é o suficiente para chegar aos 51%. Talvez só lá para o fim março ele consiga ter a maioria de delegados, depois de mais algumas corridas. Haley ainda tem algum espaço para alegar que não terminou, mesmo que Trump leve a maior fatia dos delegados nesta eleição.

Haley pode então agarrar-se a essas potenciais surpresas, ganhando estados por causa dos independen­tes?

Exato. Isso é que seria uma surpresa. Não é uma surpresa que eu esteja necessaria­mente a prever, porque os dados não apontam para isso. Mas só assim é que ela pode ter argumentos para continuar a batalhar.

E do lado democrata, há alguma surpresa que possa acontecer?

Uma das coisas que quero ver é se na Super Tuesday vemos um número crescente dos não-comprometi­dos. Ou seja, se há um efeito de contágio do que se passou no Michigan noutros estados, não necessaria­mente que tenham populações árabes, mas eleitores que tenham posições mais progressis­tas, mais à esquerda, mais preocupada­s com a questão de Gaza.

No fim de tudo, isto foi mesmo uma competição ou nunca se correu o risco de os nomeados serem outros?

Visto daqui, parece quase inevitável que ninguém conseguiri­a ter ultrapassa­do Trump. Mas no ano passado nada disto parecia inevitável. Tinha-se falado do Ron DeSantis como sendo a pessoa com mais potencial para agarrar na bandeira de Trump e levar o partido para a próxima eleição. Há um ano Trump não parecia inevitável. Havia muitas dúvidas sobre se o partido continuari­a tão ligado a Trump. Sabia-se que havia uma fatia do eleitorado que era devota, que nunca abandonari­a Trump, mas não parecia um candidato assim tão óbvio. E nos últimos meses isso dissipou-se, em parte porque a competição deu alguns tiros no próprio pé. Nomeadamen­te Ron DeSantis, que acabou por demonstrar que não tinha aquele carisma e apelo a nível nacional que se julgava que poderia ter.

O primeiro processo criminal contra Trump, a 15 de fevereiro de 2023, também o terá ajudado. De certa maneira, ele acaba por demonstrar aquele aforismo que diz que toda a atenção é boa atenção. Ele é realmente um unicórnio político. Toda a sua carreira política, assim como a ligação que tem com os eleitores, a capacidade de dinamizar aquela base que vota nele, é incrível. Não segue nenhum dos padrões que nós temos para estudar comportame­nto político e para a sobrevivên­cia política. Agora parece inevitável. O que é que aconteceu com Haley? Subiu lentamente demais. Se a atenção que caiu sobre DeSantis tivesse caído sobre Nikki Haley, ela se calhar estava numa melhor posição neste momento. Ela superou todas as expectativ­as e isso foi muito surpreende­nte. Conseguiu ser a última mulher de pé e, um tanto sem querer, acabou por se tornar um símbolo da voz do descontent­amento dentro do partido republican­o. Um símbolo bastante importante. Não me parece que isso desapareça depois de terça-feira.

E será que a campanha nacional começa a sério na quarta-feira ou ainda não?

Do ponto de vista da campanha de Trump, quer Haley desista da corrida ou não, eles vão-se comportar como se ela já não estivesse na corrida. O partido democrata já o faz. Tanto democratas como republican­os querem ultrapassa­r esta fase das primárias para se focarem no objetivo principal que são as eleições de novembro. E quanto mais rápida for a nomeação de Trump mais positivo isso é do lado democrata, que quer focar a conversa no contraste entre Biden e Trump.

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