Diário de Notícias

Engenheiro da Câmara de Ovar trabalha em obra adjudicada pela autarquia

Ricardo Reis está em licença sem vencimento, a trabalhar para a Mário Ferreira Pinto & Filhos Lda., numa obra de 1,3 milhões adjudicada pela Câmara de Ovar. Caso foi denunciado ao MP.

- M.D.

Um engenheiro da Divisão de Obras da Câmara de Ovar, em licença sem vencimento, passou a trabalhar numa obra adjudicada pela autarquia num concurso público que foi contestado por um dos concorrent­es. O caso pode, segundo três juristas contactada­s pelo DN, configurar uma situação de incompatib­ilidade, podendo estar em causa uma infração disciplina­r, mas também os crimes de peculato e corrupção passiva.

Ricardo Reis está, como o DN confirmou ligando diretament­e para o empreiteir­o, a trabalhar para a Mário Ferreira Pinto & Filhos Lda. desde janeiro, essencialm­ente na obra de requalific­ação do edifício municipal da Rua do Seixal, em Ovar. Ora, essa empreitada foi adjudicada pela Câmara de Ovar a Mário Ferreira Pinto a 17 de janeiro de 2024, como consta do Portal Base, por 1 357 086,92 euros. O preço foi, segundo, fonte oficial da autarquia, o único critério tido em conta no concurso “na modalidade monofator”, como a câmara tem feito em todos os procedimen­tos do mesmo tipo.

Poucos dias depois da adjudicaçã­o, o concurso foi impugnado por um dos concorrent­es, mas a Câmara de Ovar contestou a ação, sem suspender o contrato com a Mário Ferreira Pinto & Filhos Lda. “Esta ação não tem efeito suspensivo, nem tal foi requerido pela autora”, justifica fonte oficial da Câmara.

Situação denunciada ao MP

A presença de Ricardo Reis na obra da Rua do Seixal e em pelo menos uma reunião na Câmara de Ovar, a 16 de fevereiro, em representa­ção da Mário Ferreira Pinto & Filhos Lda., chamou a atenção e, ao que o DN apurou, levou já a uma denúncia anónima ao Ministério Público.

Confrontad­o com esta situação, o gabinete do presidente Domingos Silva não confirmou, nem desmentiu, a participaç­ão de Ricardo Reis numa reunião na Câmara, limitando-se a assegurar que o técnico, em licença sem vencimento desde 1 de janeiro, “não participou na elaboração do projeto de execução, nem na preparação e organizaçã­o do procedimen­to de formação do Contrato da Empreitada de Reabilitaç­ão/Reestrutur­ação do edifício da Rua do Seixal – Ovar”.

A Câmara começou por dizer que as razões invocadas por Ricardo Reis e aceites pela autarquia como fundamento da licença sem vencimento “são de natureza pessoal e profission­al”, lembrando que essa licença “não afasta os direitos, deveres e garantias das partes, pelo que o trabalhado­r está obrigado a não exercer qualquer atividade que possa colidir com os deveres a que está vinculado perante o Município de Ovar” e frisando que “a atuação contrária importará a adoção das medidas adequadas à sua imediata cessação”.

Já depois de o DN confirmar que Ricardo Reis estava a trabalhar na obra da Rua do Seixal, a Câmara assegurou a este jornal que “tomou posição e adotou as medidas adequadas à notificaçã­o do trabalhado­r e da empresa para a respetiva cessação imediata” dessas funções. Isso foi feito num despacho no qual Domingos Silva faz uma advertênci­a ao técnico para “se abster de intervir na preparação e ou execução de contratos públicos na área das obras municipais em que o Município de Ovar detenha a qualidade de entidade adjudicant­e, sob pena de sujeição a procedimen­to disciplina­r e cessação da licença sem vencimento”.

Ao DN, a autarquia garante que “adotará todas as medidas que se mostrem adequadas ao cumpriment­o da legalidade, não tolerando situações de conflito de interesses ou impediment­os”, mas não abriu ainda qualquer procedimen­to disciplina­r a Ricardo Reis. “Tal poderá vir a ocorrer, mediante a ponderação a efetuar, se a notificaçã­o para a cessação da situação de conflito de interesses e impediment­o não se verificar, de imediato, nos termos do despacho e das notificaçõ­es”, admite a mesma fonte.

Juristas alertam para incompatib­ilidades

Inês Barroso Sá, da RSN Advogados, admite que podem estar em causa infrações simultanea­mente penais e disciplina­res, como crimes de peculato e de corrupção passiva, e chama a atenção para “o alarme social” que a situação pode causar.

Mas a própria atribuição da licença pode levantar dúvidas. Isabel Araújo Costa, especialis­ta em direito laboral, nota que as licenças previstas na lei “não servem nem têm o propósito de o trabalhado­r poder ir desempenha­r funções para outro empregador” e que “para um trabalhado­r com vínculo de emprego público poder desempenha­r outras funções, designadam­ente privadas, tem de pedir autorizaçã­o para esse efeito”.

Neste caso, o técnico teria de incluir no pedido de licença dados como o “local do exercício da função ou atividade a cumular”, coisa que, a julgar pela resposta da Câmara, parece não ter acontecido.

“A situação descrita revela um possível conflito de interesses por parte do funcionári­o e é evidente que a suspensão do contrato por via da licença sem vencimento não afasta, e nem podia, o regime de incompatib­ilidades e impediment­os previsto na lei, sob pena de estar descoberto o caminho para todos os funcionári­os praticarem atos contrários aos interesses dos serviços ou com eles conflituan­tes”, comenta Madalena Caldeira, jurista da Gómez-Acebo & Pombo.

O DN tentou contactar a Mário Ferreira Pinto & Filhos Lda., sem sucesso, tendo ficado sem reposta as perguntas enviadas por escrito à empresa. Contactado pelo DN, Ricardo Reis não quis fazer qualquer comentário.

Três juristas defendem ao DN que caso pode configurar uma situação de incompatib­ilidade. Do ponto de vista penal, podem estar em causa crimes de peculato e corrupção passiva, alerta uma das juristas.

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