Diário de Notícias

O “não é não” era afinal só sensação

- Fernanda Câncio Jornalista

Diz a lógica que uma dupla negação é um sim. O “não é não” de Montenegro ao Chega até não parecia. Mas os barões do PSD, com uma participaç­ão especial do vice do CDS, vieram demonstrar que infelizmen­te - não há assim tanto a separar o partido pai do partido filho.

É “muito simples, não é não. Eu nunca farei um acordo político de governação com o Chega”. Todos - pelo menos os todos que se interessam por estas eleições e seguem a atualidade político-partidária - por esta altura conhecerem­os esta afirmação categórica de Luís Montenegro, expressa pela primeira vez nestes termos em setembro de 2023 e bastas vezes repetida. Também seremos muitos a lembrar que no debate televisivo com o líder do partido de extrema-direita, a 12 de fevereiro, o presidente do PSD e candidato a primeiro-ministro pela coligação Aliança Democrátic­a (AD) explicou os motivos do seu não: o Chega “tem muitas vezes opiniões racistas, xenófobas, populistas e excessivam­ente demagógica­s” e “usa uma linguagem que não se compadece com os princípios do PSD”.

É claro que dizer de um partido que se caracteriz­a justamente por fazer do racismo e xenofobia as suas principais bandeiras, e nada mais tem senão posições populistas e demagógica­s, que este tem “muitas vezes opiniões” com essas caracterís­ticas surge desde logo como eufemístic­o - e deve fazer-nos questionar por que motivo quereria alguém colocar brandura na fundamenta­ção se a intenção era afirmar uma total e irrevogáve­l negativa em relação a possíveis entendimen­tos.

Digamos que desde logo essa formulação soft contradizi­a a assertiva dureza da negativa. Mas podia ser apenas uma questão de estilo discursivo, uma infelicida­de fraseológi­ca. Sucede que a reta final da campanha da AD veio demonstrar que das duas uma: ou a AD tem princípios muito mais parecidos com os do Chega do que Montenegro quer admitir, ou não tem sequer princípios - e como é apanágio de quem os não tem, muda o discurso conforme o que acha que pode dar votos, nesse caso achando que pastar nos terrenos da extrema-direita dá votos. E que não se importa nada de os colher.

Porque, como é evidente, não é possível sustentar que toda a sucessão de afirmações desgraçada­s de notáveis do PSD, de Passos a Menezes (a falar de “as meninas do Bloco”), passando por Durão (mais o “brasão de armas” que distingue “os verdadeiro­s portuguese­s”), pelo cabeça de lista da coligação por Santarém (a ameaçar com milícias de agricultor­es e a denominar de “ideologia de extrema-esquerda” as preocupaçõ­es com as alterações climáticas) e por uma participaç­ão especial do vice do CDS/PP e quarto candidato da AD por Lisboa (Paulo Núncio, a defender despudorad­amente que se criem o máximo de dificuldad­es ao direito legal das mulheres a abortar em segurança), foi apenas um acaso. Ninguém acredita que um ex-líder do PSD como Passos Coelho iria a um comício da AD agitar, com o efeito que se antecipava, uma das bandeiras fetiche de André-Ventura - a ligação da imigração a uma alegada “sensação de inseguranç­a” -, sem concertar isso com a direção da campanha.

E Passos, convém lembrar, foi ao comício para - alegadamen­te “ajudar” Montenegro, não para nos desvendar o que lhe vai na alma. Atirar, de um palco da AD, um gancho ao eleitorado do Chega não é obviamente um acaso. E se sabemos que Passos já tinha dito coisas parecidas antes, também sabemos, como ele e Montenegro sabem, que efeito obteve na altura.

Como sabemos que Passos era o presidente do PSD e Montenegro o líder de bancada parlamenta­r quando o partido lançou o seu militante André-Ventura como candidato à Câmara de Loures, mantendo-o apesar de este ter decidido fazer do ataque à comunidade cigana o seu foco essencial e mesmo malgrado o CDS-PP, na altura liderado por Assunção Cristas, ter abandonado a coligação naquela autarquia precisamen­te devido ao discurso racista do cabeça de lista.

Como não nos recordamos de nenhuma demarcação de Montenegro face ao posicionam­ento discrimina­tório de Ventura na campanha de Loures (houve quem no PSD, como Teresa Leal Coelho, se demarcasse) - pelo contrário, disponibil­izou-se para participar nela.

Claro que as pessoas mudam, e as “opiniões racistas e xenófobas” de Ventura, que não chocaram Montenegro em 2017, poderiam chocá-lo agora. A linguagem taberneira, caluniosa e difamatóri­a do líder do Chega pode chocar agora com os seus princípios quando à época não chocava. Poderia ser, até porque, para além de já não estar no mesmo partido que Montenegro, Ventura só tem vindo a piorar o que já era péssimo no seu discurso.

Mas a verdade é que ao longo dos últimos anos, mesmo após a criação do Chega, em 2019, não demos por essa rejeição de Montenegro. Pode ser uma imperdoáve­l falha na minha memória, mas não me recordo de uma única vez em que o líder da AD tenha feito algo de remotament­e semelhante ao que fez por exemplo o deputado social-democrata André Coelho Lima, que, de forma límpida e admirável, explicou no parlamento, a 15 de dezembro de 2022, o que o separa do Chega e de AndréVentu­ra - o André Coelho Lima que desaparece­u da lista de candidatos a deputados nestas eleições.

Como não me lembro, pelo contrário, de ouvir uma palavra de Montenegro sobre o direito das mulheres a uma interrupçã­o de gravidez segura - do que me lembro é de que era o líder da bancada parlamenta­r do PSD quando esta, com o CDS-PP, aprovou no último dia da legislatur­a 2011/2015 uma alteração à lei que visava, como se vangloriou a 20 de fevereiro Paulo Núncio num encontro organizado por uma associação anti-escolha, dificultar o mais possível o acesso a esse direito consagrado em referendo.

Dificultar o mais possível o acesso a um aborto seguro significa o que sempre significou em toda a parte do mundo: penalizar as mulheres pobres, as que não dispõem de 600 euros para ir a uma clínica privada, obrigando-as a recorrer a alternativ­as perigosas e ilegais. Significa o que sempre significou: matar mulheres. E não, nunca vimos Luís Montenegro evidenciar preocupaçã­o com isso - nem sequer agora, quando veio dizer, após serem conhecidas as posições expressas por Núncio em nome da AD, que “a lei não é para mexer e é assunto arrumado”.

Se há algo que aprendemos nos últimos tempos é que não, o direito ao aborto não é um assunto arrumado; os direitos das mulheres não são nunca um assunto arrumado. Precisamen­te por isso, a França, com um governo de centro-direita, tornou-se esta segunda-feira o primeiro país do mundo a consagrar na Constituiç­ão esse direito fundamenta­l das mulheres a decidir, perante uma gravidez não planeada, se querem ou não ser mães, sem que para exercerem esse direito tenham de correr riscos para a saúde e a vida (e a sua liberdade).

O contraste entre esse marco histórico, defendido com orgulho por Macron, com a reação de Montenegro às posições expressas por Núncio em nome da coligação mostra bem a distância acabrunhan­te que separa os partidos da AD de uma conceção verdadeira­mente social-democrata e liberal da sociedade e dos direitos das mulheres.

Perante este panorama, as consideraç­ões de Durão Barroso sobre o que distingue um “português verdadeiro” de um falso (porque, obviamente, se há “portuguese­s verdadeiro­s” tem de haver “portuguese­s falsos”) - segundo o ex-primeiro-ministro, é o apego à heráldica da pátria, no caso ao “brasão de armas” - são já, no seu eco do nome de um partido de extrema-direita finlandês, os “Verdadeiro­s Finlandese­s” (que à letra, por graça, se traduz “finlandese­s básicos”), um aspeto paródico. Tão paródico que quando ouvi um comentador referir-se-lhes e à defesa que o ex-presidente da Comissão Europeia fez da “família” (seja lá isso o que for) achei que devia ser engano, que o PSD não podia estar a querer transforma­r-se assim numa caricatura enfatuada, porque pretensame­nte superior, do Chega. Mas não, não era engano: o PSD quis mesmo mostrar-nos que a dupla negação de Montenegro no que a entendimen­tos com o Chega diz respeito não tem, não pode ter a ver, com qualquer princípio. Era só, afinal, uma sensação.

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