Diário de Notícias

Opinião Luís Castro Mendes

- Diplomata e escritor

Estou a ler, com muito gosto e proveito, o livro de crónicas de Hélder Macedo, Pretextos. A páginas tantas (página 39, para ser rigoroso), ele cita uma criatura, que eu não posso classifica­r com o adjetivo que o autor lhe atribuiu, “que tinha por hábito arrastar pelo braço um qualquer de nós em murmúrios ciciados: “Vamos conversar?” E depois silêncio, dava logo para entender que a ameaça da conversa era um pretexto, um intervalo entre nada e nada.

Hélder Macedo dá-nos aqui uma excelente definição do que é uma crónica e do espírito que nos leva a produzir estes textos, algures entre a reflexão solta e livre do ensaio e uma espécie de recensão crítica dos livros e da vida, já que, como dizia Mathew Arnold, poetry is a criticism of life. E às vezes a nossa resposta à vida não se faz num poema (e Hélder Macedo tem-nos, magníficos), mas melhor se exerce numa crónica, irónica ou indignada, comovida ou desalentad­a, e estes Pretextos oferecem-nos todos os matizes destes sentimento­s.

A ideia de que o cronista é aquele que nos pega no braço e nos arrasta para uma conversa, entre murmúrios, parece-me conter uma preciosa definição deste género “crónica”, que não é um ensaio, mas guarda o espírito digressivo de Montaigne, que não é uma recensão crítica, mas nos transmite a admiração (sim, Hélder Macedo, contrariam­ente a muitos dos seus e nossas compatriot­as das letras, tem uma notável capacidade de admirar) ou a rejeição de uma obra, projeto ou evento, numa ironia leve e fina. que não deixa de ferrar fundo naqueles que critica.

Este livro acompanha a nossa história recente, de 2006 a 2023, em artigos originaria­mente publicados no nosso JL, e reconhecem­o-nos todos nos episódios a que responde e reage e que a nós também nos feriram e maltratara­m. Ao contrário do que é costume entre nós, Hélder Macedo geralmente (há uma ou outra exceção) não usa de circunlóqu­ios para referir quem e o quê ele ataca, mas, pelo contrário, se me é permitida esta expressão, “chama os bois pelos nomes” e vemos claramente os alvos das suas críticas.

A crónica é um género que nos permite falar de tudo, das novidades políticas como dos novos e velhos livros, da História como da temperatur­a do dia, dos amigos como das viagens. E Hélder Macedo, neste livro, viaja muito e é com renovado prazer que nos deixamos pegar pelo braço para seguir os seus itinerário­s e as suas conversas. É que, ao contrário de Álvaro de Campos (“não gosto que me peguem no braço”), seguir os comentário­s e as digressões do Hélder constitui um estímulo e um deleite para as nossas mentes. Como conversar com Montaigne ou com Eduardo Lourenço...

A política britânica, que Hélder Macedo segue no quotidiano, revela-se mísera e mesquinha e o descambar no Brexit resulta de todos os antecedent­es que aqui são dissecados. A nossa política, que nos dói sempre mais, é devidament­e fustigada nos tempos da troika e encarada com expectativ­a, nos últimos anos.

Evocando o seu tempo de secretário de Estado da Cultura no Governo efémero de Maria de Lourdes Pintasilgo, Hélder Macedo conta-nos de MariaVelho da Costa (que com ele colaborava) que “o que ela mais apreciou em [si], como político, foi não estar a querer fazer uma carreira política”. Essa apreciação poderia ter sido feita pelo próprio. Efetivamen­te a relação da gente da Cultura com a política é complicada. Mas louve-se ao nosso autor a disponibil­idade e sentido do dever cívico que revelou ao aceitar o convite de Maria de Lourdes Pintasilgo.

Escrever de fora do nosso país dá-nos uma a distância de visão, que favorece a razão serena e a objetivida­de da perspetiva. Mas também é certo que a ausência nos corta do quotidiano e das sensibilid­ades dos nossos amigos e inimigos, que melhor sentimos aqui, no nosso ambiente.

Eu aprendi com Hélder Macedo a ler Bernardim Ribeiro (que no liceu me enfastiava, confesso) e a ler melhor Camões e CesárioVer­de, que sempre me fascinaram, mas que muito ganhei ao compreende­r melhor o jogo por que se exerce esse fascínio.

Para além de um percurso cívico exemplar, que não oculta a lealdade de alguém profundame­nte politizado, mas que não está virado para se converter em político, como certeirame­nte afirmou a nossa saudosa MariaVelho da Costa, Hélder Macedo foi um grande embaixador da nossa cultura em Londres, valendo muito a pena ler o que ele escreve sobre a nossa diplomacia cultural.

Hélder Macedo, continue por favor a pegar-nos de vez em quando pelo braço... Vamos conversar?

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