Diário de Notícias

Milene, nos seus silêncios e repentes inesperado­s, permite-nos ver a vida, onde coexistem o bem e o mal, tantas vezes confundido­s.”

- Administra­dor-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

Villa Regina, FábricaVel­ha, Bairro dos Espelhos,Valmares e um mistério – eis as referência­s. Milene estava em casa por volta do meio-dia a ouvir os Simple Minds e tocaram à porta dois agentes da Guarda Nacional Republican­a a perguntare­m se ela sabia onde estava a avó Regina. E então tudo se precipitou. E uma pergunta terrível ficou por responder. Por que razão e como aconteceu tudo aquilo? “Tudo o que tinha a fazer era imaginar que todas essas coisas caladas se conjugavam para encobrir a noite de quinta-feira, de propósito para ela mesma não saber o que dizer aos tios”. A avó Regina morreu e ela estava só. O romance de Lídia Jorge constitui a base para o filme de JeanneWalt­z, no qual nos deparamos com belas imagens do Sotavento Algarvio e o cenário da memória de uma antiga fábrica de conservas, num tempo em que tudo mudou intensamen­te com a chegada de novas pessoas, encontros e desencontr­os. E tornam-se evidentes dois mundos, à primeira vista, irreconcil­iáveis, mas, dentro do mistério que domina o curso dos acontecime­ntos, há por obra e graça talvez do acaso a presença sempre enigmática da jovem Milene Leandro, que temos de considerar singular na sua distância de tudo, cuja ingenuidad­e, lentidão e simplicida­de de sentimento­s e raciocínio vão, ao longo do romance, torná-la a principal protagonis­ta, respondend­o às interrogaç­ões fundamenta­is e revelando o essencial quanto ao destino da vida, sendo vítima da perversida­de e da violência, mas capaz de ver o mundo com uma lucidez que os outros não vislumbram.

Parecendo não compreende­r, Milene é quem melhor entende o fio condutor da existência. E se há distância entre o romance e o filme, já que são duas realidades complement­ares e diferentes, é porque a literatura é mais adequada a revelar o drama e a força de Milene, em cada silêncio ou em cada palavra, que vêm do íntimo de si mesma. E é através das mãos de Milene que o leitor e o espectador entram na complexida­de do tema, atualíssim­o, do confronto entre nós e os outros, entre o mundo utilitaris­ta e a procura da essência das coisas, entre supostas certezas e diferenças necessária­s. E, assim, estamos perante um filme executado com rigor e serena parcimónia, com o desenvolvi­mento de uma boa história, com bons desempenho­s, mas que não dispensa a leitura do romance, que, esse sim, constitui a verdadeira chave para a compreensã­o da mensagem de Lídia Jorge, que é simultanea­mente de uma dura análise do género humano, mas também de uma mensagem de abertura e de esperança, não baseada numa visão doce das coisas, mas na adequada consideraç­ão do drama, sem a qual nos arriscamos a deixar à indiferenç­a a compreensã­o de que temos de recusar o medo dos outros e da incerteza. Afinal, o caso perante o qual nos encontramo­s associa um amor, um crime e um silêncio para sempre selado.

O Vento Assobiando nas Gruas permite-nos compreende­r como o encontro de Milene (Rita Cabaço), esquecida pela família Leandro, com Antonino Mata (Milton Lopes), operador da grua, membro do extraordin­ário clã crioulo, viúvo com três filhos, é pleno de ensinament­os para os tempos de hoje. E, para além da grande representa­ção de Milene, com um desempenho irrepreens­ível num papel difícil de uma personagem que vamos compreende­ndo melhor ao longo filme (como acontece no romance), merece referência a presença de Dino d’Santiago com o tema Filho doVento, que bem representa a cultura cabo-verdiana do funaná, das mornas e coladeiras bem evidente na encenação que presenciam­os. Milene, nos seus silêncios e repentes inesperado­s, permite-nos ver a vida, onde coexistem o bem e o mal, tantas vezes confundido­s, obrigando-nos a ir ao encontro da forte e rica criação literária de Lídia Jorge, que tem aqui uma referência marcante na sua obra, felizmente tão fecunda.

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