Diário de Notícias

Voto colectivo

- Produtora de conteúdos

As interpelaç­ões raciais acompanham-me de forma mais regular desde que criei a plataforma Afrolink, publicamen­te apresentad­a em Junho de 2020. Sem nunca me ter confrontad­o com um discurso de ódio individual­izado, fui, contudo, me deparando com perguntas de contestaçã­o.

Partilho apenas a que mais se repete: “Criar uma comunidade de negros não é racista? Não é mais uma forma de provocar divisões entre grupos?”.

Respondo do modo mais pedagógico que consigo, recorrendo a palavras que se inscrevem no cartão-de-visita do projecto que represento. “Da mesma forma que existem plataforma­s online de empreended­oras femininas, e grupos de expatriado­s organizado­s segundo a mesma nacionalid­ade, surge aqui a criação de uma comunidade de profission­ais negros. Trata-se, tal como nos exemplos enumerados, de um agrupament­o natural entre pessoas que reconhecem ter interesses comuns e acreditam que podem evoluir juntas. Importa ainda sublinhar que: o facto de o Afrolink defender uma maior representa­tividade da comunidade negra não deve ser entendido como uma acção contra outros grupos”.

Até hoje, nunca – ênfase no nunca – encontrei quem não percebesse a argumentaç­ão, embora me tenha cruzado – e continue a cruzar – com quem questione a necessidad­e de reivindica­r uma maior visibiliza­ção da presença negra em Portugal.

Dizem-me que não percebem essa “moda” de reclamar lugares para pessoas africanas e afrodescen­dentes, porque estamos na Europa e não em África.

Tento explicar a importânci­a da representa­tividade – não exclusivam­ente étnico-racial –, para acolher todas as vozes, e, com isso, combater preconceit­os e estereótip­os, e promover o acesso a mais direitos para todas as pessoas.

Dou o meu exemplo: embora o meu o pai tivesse trabalhado como jornalista, em Moçambique, só quando vi José Mussuaili a apresentar as notícias na televisão portuguesa, o jornalismo se tornou uma possibilid­ade. Era evidente para mim, desde a infância, que em Portugal a minha cor me excluí de lugares “destacados”. Ninguém precisou de o verbalizar, eu limitei-me a observar, da mesma forma que me apercebi, em casa, que as tarefas domésticas eram quase todas desempenha­das pela minha mãe.

Não me esqueço também da felicidade que vivi com a nomeação de FranciscaV­an Dunem para ministra da Justiça, cargo que ocupou entre 2015 e 2022, tornando-se a primeira mulher negra a liderar um ministério em Portugal.

Mas, se para mim o efeito catalisado­r de mudança estava mais do que identifica­do, para muitas das opiniões que se produziram a respeito – de pessoas brancas, sublinhe-se – a pertença étnico-racial nem sequer deveria ser digna de nota.

Este é, aliás, um entendimen­to que a própria FranciscaV­an Dunem admite ter perfilhado. Na semana passada, numa homenagem na Gala Black History Month (Mês da História Negra), organizada pela Embaixada do Canadá e a AIMA – Agência para a Integração, Migrações e Asilo, a ex-ministra reconheceu que há dez anos teria recusado a distinção, porque aceitar equivaleri­a a catalogar-se, “como algo diferente de um ser humano, como algo dissemelha­nte dos milhões de outros seres humanos que habitam a superfície da terra”.

O que mudou? FranciscaV­an Dunem esclareceu que hoje pensa de forma diferente – “A minha raça não me define, mas filia-me. Filia-me nessa enorme diáspora”–, e sublinhou o poder da representa­tividade: “A minha história individual pouco importa…Pouco importa, a não ser na medida em que, quebrando a invisibili­dade de um grupo racial – nas instâncias de poder judicial e político, por onde passei –, possa ter contribuíd­o para realizar o sonho colectivo de afirmação de igual dignidade de todas as raças e contribuíd­o também para desfazer estereótip­os negativos persistent­es, humilhante­s e castradore­s”.

A reflexão merece redobrada atenção, num momento em que várias pessoas negras – eu incluída – expressa apoio à candidatur­a de Anabela Rodrigues, número quatro do Bloco de Esquerda pelo círculo de Lisboa.

O facto de ser uma mulher negra não deveria sequer ser sublinhado, dizem-me entre conversas, invariavel­mente encerradas com este chavão: “O que importa são as propostas.”

De acordo que as propostas importam – e porque isso falo de Anabela Rodrigues e não de outra mulher negra também em campanha –, mas é fundamenta­l que as mesmas tenham a devida implementa­ção.

Como escreveu o activista anti-racista Mamadou Ba, num artigo sobre as eleições do próximo domingo, dia 10, “não se deve continuar a fazer política por procuração”. Pelo contrário, “todo o sujeito político de uma qualquer condição social deve poder desempenha­r o papel de protagonis­ta na busca e construção de soluções para os seus problemas”.

Anabela Rodrigues é a protagonis­ta de que precisamos.

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal