Diário de Notícias

APV, uma vida

- José Júdice

António-Pedro Vasconcelo­s, 10 de Março de 1939, 6 de março de 2024. Morreu aos 84 anos. A dias de fazer 85.

Tenho a certeza que ele preferiria dizer que viveu 85 anos. É uma diferença entre a vida e a morte essencial em alguém que viveu cada dia da sua vida com uma paixão e uma intensidad­e como se cada dia fosse único e não houvesse amanhã. Como se não houvesse morte e nada tivesse um fim. Tudo para ele era decisivo, determinan­te, fatal como o destino e escrito na pedra para a eternidade. Despertou amizades e inimizades, acendeu paixões e ódios, cultivou causas, grandes e pequenas, importante­s e fúteis, pessoais e universais, efémeras ou eternas, constantes ou passageira­s, com uma intensidad­e a cada momento que o tornava único num país cinzento e acomodado.

Conheci-o aí em finais dos Anos 60, quando partilhava um apartament­o e uma mesa de póquer na Av. dos Estados Unidos com João César Monteiro e uma mesa no Vavá com Seixas Santos, Paulo Rocha, Fernando Lopes e todo o grupo que queria revolucion­ar o cinema português. Que queria revolucion­ar a cultura, a sociedade, os costumes, a literatura, o jornalismo, a política, a cabeça dos portuguese­s.

Não conseguira­m, mas essa continuava a ser uma luta diária do APV. Mudava de objectivos e de alvos fundamenta­is ou circunstan­ciais sempre com a mesma intensidad­e com que defendia as causas de sempre e as paixões de uma vida. Punha toda a sua imensa e única energia tanto no Benfica como em Stendhal, na literatura, no cinema ou na gastronomi­a, como em futilidade­s do dia-a-dia, como os charutos, o bridge ou o tipo de queijo italiano que pode acompanhar uma pasta ou que vinho do Porto é obrigatóri­o para demolhar o pão-de-ló. O de Margaride, claro. Exaltava-se com os malefícios do neo-liberalism­o e a TAP com a mesma paixão com que exaltava a sopa de rabo de boi do Vila. Estar com ele era uma experiênci­a de inteligênc­ia, de cultura, de desafio e de discussão sempre apaixonada, sempre radical, sempre intermináv­el.

O seu último desafio, que viveu e o consumiu até ao último sopro talvez como alívio para a imensa tragédia pessoal que o atingiu com a morte dramática de um filho, foi um documentár­io sobre o 25 de Abril. Um documentár­io que começou como um projecto limitado, mas que foi crescendo, com cada vez mais entrevista­s, mais informação, mais factos, mais hipóteses, mais testemunho­s, mais histórias e mais enredos, num processo impossível que era a sua principal caracterís­tica como ser humano e como intelectua­l: o desejo de tudo saber, tudo abarcar, tudo explicar, tudo envolver numa conclusão definitiva e irrefutáve­l.

António-Pedro de Vasconcelo­s foi um dos últimos de uma espécie rara à beira da extinção ameaçada com a informação digital e a cultura instantâne­a do Google e das redes sociais. O intelectua­l público. Sempre rodeado de livros que o acompanhav­am para todo o lado e sublinhava com um fervor quase maníaco, tudo queria saber e em tudo procurava a verdade definitiva. Nos livros, no cinema, na política, nos amigos e na vida. Nunca a encontrou, por isso até ao fim continuou a procurá-la.

Não, o APV não morreu aos 84 anos. Viveu 84 anos. Não foi uma morte de um amigo. Foi, é, uma vida.

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