Diário de Notícias

Os deuses com inveja dos humanos

O novo filme de Tiago Guedes, propõe uma recriação inesperada e envolvente dos Diálogos com Leucó, do escritor italiano Cesare Pavese: os encontros de deuses e semi-deuses ecoam nos temas, perplexida­des e impasses do nosso presente.

- TEXTO JOÃO LOPES

Vivemos tempos cinematogr­áficos em que a noção de experiment­ação está longe de ser um valor corrente. Dito de outro modo: não é todos os dias que deparamos com um filme que assume o risco de desafiar os limites da própria linguagem cinematogr­áfica. Como? Convocando a espessura da palavra literária para a sua construção, dir-se-ia procurando que a escrita ganhe “corpo” em imagens e sons. A partir de hoje nas salas, Diálogos depois do Fim, de Tiago Guedes, é um desses filmes, tendo como base os Diálogos com Leucó, do italiano Cesare Pavese (1908-1950), livro de 1947 disponível entre nós numa edição da Assírio & Alvim (2007).

Deparamos com uma teatralida­de que começa no artifício inerente aos diálogos filmados (ainda que não tenham sido concebidos como matéria especifica­mente teatral). Pavese imaginou aquilo que talvez possamos definir como um ciclo terrestre de aventuras divinas. Mais exactament­e, o seu livro contém 27 diálogos que, agora, na sua nota de intenções, o realizador define como encontros “entre deuses humanizado­s, semideuses, heróis e outras figuras pagãs da mitologia grega”, susceptíve­is de questionar “a sociedade do homem contemporâ­neo.” De tal modo que tudo isso acontece “fora de um tempo e um espaço determinad­o e, por isso, sempre atual.”

Objecto híbrido, portanto, Diálogos depois do Fim é-o também pelo conceito de difusão. Produzido por Ana Pinhão Moura e Paulo Branco, com os seus seis diálogos (com durações na ordem dos 15/20 minutos), o filme agora lançado correspond­e a uma parte de um empreendim­ento mais geral — no total, foram rodados 19 diálogos de Pavese para posterior difusão na RTP2, entidade coprodutor­a do projecto (os que não integram a longa-metragem agora lançada serão exibidos em sessões especiais em Lisboa e no Porto, respectiva­mente no Nimas e no Teatro Campo Alegre).

Deuses que filosofam

Que acontece, então? Se quisermos condensar numa sinopse sugestiva estes momentos “privados” de deuses que filosofam, dir-se-ia entre a indiferenç­a e a angústia, arriscarem­os dizer que as suas afirmações, especulaçõ­es e aforismos nascem de uma carência, porventura uma inveja, em relação aos humanos e aos infinitos sobressalt­os da sua vulnerável existência — ainda que os pobres humanos não tenham grandes certezas para contrapor, muito menos para os consolar.

Veja-se e escute-se o primeiro diálogo, “Os Cegos”, entre Édipo ( João Pedro Mamede) e Tirésias (Maria do Céu Ribeiro), a meu ver o mais conseguido do conjunto proposto por Diálogos depois do Fim. A frase citada no dossier do filme — “Todos oramos a um deus qualquer, mas o que acontece não tem nome” — poderá servir de mote ao desencanto que circula por todos estes encontros e desencontr­os. E tanto mais quanto o cenário natural (um recanto “escondido” no meio de gigantesca­s formações rochosas) surge como uma espécie de câmara de eco, e também um refúgio, daquilo que é dito e argumentad­o.

Aliás, o mesmo se dirá, por exemplo, do diálogo “Espuma de Onda”, entre Britomátri­s (Beatriz Maia) e Sapho (Isabel Abreu), ou “As Musas”, envolvendo Mnemósine (Sofia Dias) e Hesíodo ( João Pedro Vaz, co-responsáve­l, com Tiago Guedes, do argumento e da direção de actores). A cenografia nasce de uma natureza transfigur­ada em território que, por assim dizer, destaca e “engole” as personagen­s. No limite, o natural transcende o seu próprio naturalism­o, gerando ambiências puramente metafísica­s.

Romper a solidão

As palavras de Diálogos depois do Fim nem sempre possuem

amesma vibração no dizer dos intérprete­s, por vezes ficando a sensação de que faltou encontrar o melhor equilíbrio entre a sonoridade vital dessas palavras e a “intromissã­o” dos sons naturais. Seja como for, importa sublinhar a ousadia que é trabalhar a herança de Pavese como matéria que ecoa no nosso presente, em particular no modo como encaramos as convulsões da vida face aos desígnios, por certo indecifráv­eis, daquilo a que damos o nome de “destino”.

Numa citação frequentem­ente reproduzid­a, Pavese resumiu o seu entendimen­to paradoxal da existência humana através de uma ironia amarga: “Todo o problema da vida é este: como romper a própria solidão, como comunicar com os outros?”

É de uma solidão paralela que nasce um filme como Diálogos depois do Fim. De alguma maneira, está expressa também nas palavras de Tiago Guedes: (…) “o filme não é fiel ao universo ‘clássico’ do autor nem pretende retratar de forma realista o nosso contexto social e político, mas apenas sugerir que os sentimento­s e os questionam­entos expostos nos diálogos estão impregnado­s de actualidad­e, que estamos nós também a viver o colapso de um certo mundo, e que é urgente refletir sobre isso.”

Daí também a proeza ancestral que só o cinema pode garantir. Por um lado, os espaços naturais de Diálogos depois do Fim (registados, na sua maioria, em paisagens dos Açores) definem uma geografia intemporal, para lá de qualquer coordenada racional ou histórica. Ao mesmo tempo, por outro lado, somos convidados a penetrar num território em que a aventura das palavras acontece como coisa íntima, visceralme­nte enraizada na transparên­cia, e também nos enigmas, do nosso presente. Esse território é, afinal, tão primitivo quanto envolvente, confundind­o-se com a escuridão iluminada de uma sala de cinema.

JOÃO LOPES RUI PEDRO TENDINHA

Diálogos depois do Fim,

INÊS N. LOURENÇO

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 ?? ?? Diálogos depois do Fim: das palavras de Pavese para o nosso presente.
Diálogos depois do Fim: das palavras de Pavese para o nosso presente.

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