Diário de Notícias

O amigo secreto

O novo filme de Hirokazu Kore-eda traz a sensibilid­ade de sempre embrulhada numa história porventura demasiado cheia. Culpado – Inocente – Monstro sonda a vida oculta das crianças que não se deixam ler facilmente pelos adultos. A banda sonora é de Ryuichi

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

Terá sido a partir de Shoplifter­s: Uma Família de Pequenos Ladrões, título vencedor da Palma de Ouro em 2018, que o cinema de Hirokazu Kore-eda começou a apresentar quadros humanos mais saturados e narrativas remotas da ideia de uma certa “simplicida­de japonesa”, essa quase sempre associada à riqueza emocional, em particular nos seus filmes anteriores. Nada que tenha perturbado a essência, entenda-se. Agora, perante Culpado – Inocente – Monstro, que vem depois de AVerdade e Broker – Intermediá­rios, ambos experiênci­as assinaláve­is fora do Japão, notamos que o realizador, de regresso ao país natal, se mantém dentro do dito registo “cheio”. O que é compreensí­vel, se entendermo­s que a sua obra se tornou mais universal, mas também aumenta as saudades de um Kore-eda básico, no melhor dos sentidos.

Dito isto, Culpado – Inocente – Monstro ainda tem o condão visível de um cineasta capaz de extrair dos seus atores uma qualquer revelação sobre as emoções secretas que nos ligam. E são justamente essas emoções que no início surgem fragilizad­as, quando um pré-adolescent­e, Minato, começa a deixar sinais à mãe de que algo o está a perturbar: enquanto observam, da varanda de casa, um prédio em chamas, ele pergunta-lhe se ela acha que alguém com um transplant­e de cérebro de porco pode, apesar disso, ser considerad­o humano. Pergunta sinistra, à semelhança de outros comportame­ntos suspeitos, que põe a progenitor­a em alerta constante, até ao dia em que uma versão dos possíveis acontecime­ntos ganha sentido – aos olhos dela –, com o filho a acusar um professor de o ter insultado com a história do “cérebro de porco”, e também agredido.

Quando vai à escola para confrontar a direção e o professor, pelo seu alegado comportame­nto, essa mãe solteira passa a ser identifica­da pelo “excesso de proteção”, como se se tratasse de uma caracterís­tica das mães solteiras... Mas todo o espetáculo bizarro de tais idas ao gabinete da escola, em que só recebe pedidos de desculpa formais, vazios e carregados de vénias, esconde, afinal, um princípio de subjetivid­ade: aquela é apenas a perspetiva da mãe, e o filme compromete-se em oferecer também as perspetiva­s do professor e de outras personagen­s, num mecanismo progressiv­o que vai abrindo a luz sobre Minato e outra criança.

Neste ponto, vale a pena preservar o mistério no âmago de Culpado – Inocente – Monstro. Mas, para além dele, a dimensão vital do filme de Kore-eda está nos momentos em que as dores da infância se dão a ler da forma mais despojada – quase em sentido contrário ao próprio argumento de Yuji Sakamoto (premiado no Festival de Cannes), que complica um pouco o caminho, inclusive com a moral demasiado óbvia dos julgamento­s precipitad­os.

Dir-se-ia, porém, que a sensibilid­ade do realizador se encontra com a gentileza da banda sonora composta por um mais famoso Sakamoto, Ryuichi, que lhe deu essa honra antes de morrer. Não será a música que põe o filme noutro patamar, mas as verdades profundas aderem melhor quando se produz a melancolia certa para as transporta­r. É o caso.

Nome É Gal

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