Diário de Notícias

Opinião Victor Ângelo

- Conselheir­o em segurança internacio­nal. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

Nas antevésper­as das eleições legislativ­as, queria lembrar que votar é exercer um direito e cumprir um dever de cidadania. Claro que a abstenção também é entre nós um direito, mas o patriotism­o e os povos que em muitos países não podem votar livremente ou que são vítimas de falcatruas eleitorais pedem-nos que encaremos a nossa ida às urnas como parte da sua luta e que digamos presente! Trata-se de uma expressão de maturidade cívica e, acima de tudo, da consolidaç­ão da liberdade. A democracia é sempre frágil. Só se reforça se for exercida com serenidade e se se souber reconhecer o valor que resulta da diversidad­e de opiniões.

Fez parte do meu itinerário profission­al dar apoio a várias eleições nos países em que servi. Para ser mais exato, o meu primeiro compromiss­o eleitoral foi como membro da Comissão Nacional de Eleições, após o 25 de Abril. Tratou-se de organizar as eleições constituin­tes de 1975. Não tínhamos qualquer tipo de experiênci­a na matéria e a confusão política existente na altura era enorme. Na CNE havia ainda um sem-fim de delegados dos partidos, que tornavam impossível o nosso trabalho.

Tiveram todos de ser excluídos da Comissão tão rapidament­e quanto foi possível. Só assim se conseguiu fazer avançar o processo preparatór­io. As eleições foram finalmente um êxito em termos de participaç­ão e de credibilid­ade.

Foi isso que sempre procurei obter nas eleições que viria depois a organizar ao longo da minha vida profission­al nas Nações Unidas: participaç­ão e credibilid­ade. Algumas respondera­m a esses dois critérios fundamenta­is, outras não. Todas foram muito complicada­s, sobretudo quando ocorriam no rescaldo de uma guerra civil ou se tratava de uma transição para o multiparti­darismo. Essas transições ocorreram em bom número depois do fim da Guerra Fria.

A experiênci­a ensinou-nos que quem está no poder tudo fará, incluindo as piores trafulhice­s, para o não perder. De entre os vários grandes mestres da intrujice com quem tive de lidar, Robert Mugabe mostrou habilidade­s geniais nesse domínio. Assim, a partir de um certo momento histórico, em 2002, opus-me à participaç­ão da ONU em qualquer uma das etapas dos processos eleitorais do Zimbabwe. O envolvimen­to das Nações Unidas teria permitido a Mugabe e ao seu sucessor pintar as fraudes com tintas democrátic­as. Alguns colegas da ONU e também da UE não entenderam bem a minha posição. Nem aí, nem noutros países, em contextos semelhante­s, pois olham para a assistênci­a eleitoral como mais uma tarefa que faz parte do rol das suas funções. Ora, as eleições não podem ser vistas, em nenhum contexto, de modo ingénuo e ligeiro.

Uma das mais complexas situações com que fui confrontad­o aconteceu na Tanzânia. Enquanto representa­nte residente da ONU, uma das minhas missões era ajudar a nova liderança nacional a transitar do regime de partido único para um sistema com vários partidos concorrent­es. Estávamos em 1995 e essa decisão fazia parte de um esforço mais amplo de abertura da Tanzânia ao mundo. Na parte continenta­l do país, conhecida no passado como o Tanganica, as eleições decorreram de modo aceitável. No arquipélag­o de Zanzibar, uma região da Tanzânia com uma autonomia invulgar, quase total, o ato eleitoral foi um roubo descarado, com o presidente de Zanzibar derrotado nas urnas, mas solenement­e declarado vitorioso pela comissão eleitoral da região. Durante mais de dois meses fiz quase todos os dias o trajeto entre Dar es Salaam e Zanzibar, com o propósito de manter a calma entre as partes e tentar restituir a credibilid­ade ao processo. O Governo central, em Dar es Salaam, nunca se quis meter na disputa e eu tive de aceitar a situação de força criada pelo presidente embusteiro. Esta foi das fraudes mais evidentes e teria dado para escrever um tratado sobre a arte do fingimento democrátic­o, o uso da artimanha e do poder.

Graças à nossa história dos últimos 50 anos, pertencemo­s em Portugal aos 20% da população mundial que vivem em países livres. Assim o considera a Freedom House, uma instituiçã­o independen­te e credível baseada em Washington. No relatório anual sobre o estado da liberdade no mundo – a edição deste ano acaba de ser publicada –, a Freedom House conclui que a manipulaçã­o dos atos eleitorais em numerosos países revela uma tendência para o agravament­o. O abuso do poder, o radicalism­o, os ataques ao pluralismo, a influência enviesada de certos canais televisivo­s, as mentiras propagadas através das plataforma­s sociais e amplificad­as pelas técnicas da Inteligênc­ia Artificial, tudo isto é utilizado para condiciona­r e falsear as escolhas políticas dos cidadãos. Estamos numa via de derrapagem para o embuste político, aproveitan­do os avanços tecnológic­os e o investimen­to propositad­o num tipo de educação que não cultiva o espírito crítico. Promove-se, isso sim, a intolerânc­ia, a superficia­lidade, o clubismo, a rebeldia e a indiscipli­na, e chama-se a isso liberdade política. E, ao mesmo tempo, esquecemo-nos que 38% da população mundial sobrevive em ditaduras e 42% sofre sob regimes prepotente­s e politicame­nte ilegítimos.

Quando no domingo depositarm­os o voto na urna, estaremos também a enviar uma mensagem de esperança para quem, por esse mundo fora, aspira pela liberdade.

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