Diário de Notícias

Vera Holtz “A novela brasileira sempre discutiu questões contemporâ­neas e feministas”

ENTREVISTA A atriz Vera Holtz, que está em Portugal, em digressão, com a peça Ficções, fala ao DN sobre personagen­s feministas marcantes e reflete sobre a humanidade, tema central do monólogo, baseado no best-seller Sapiens, de Yuval Harari.

- AMANDA LIMA

Vera Lúcia Fraletti Holtz, nascida em 1953, é uma atriz e encenadora brasileira muito acarinhada pelos portuguese­s. Iniciou a sua carreira artística no teatro, em 1975 . A partir do início dos anos 1980 passou a ser presença frequente nas novelas da Globo que eram emitidas na RTP.

Do que mais gosta aqui em Portugal?

Portugal, para nós brasileiro­s, faz parte do nosso histórico, não é? Todo a nossa aprendizag­em é ligada à história de Portugal. Então, quando eu chego aqui é uma loucura isso para mim, de entender essa questão da ancestrali­dade, de onde vem a origem, de quem é que, de alguma forma... é questionáv­el tudo isso. A questão do “descobrir o Brasil” é uma questão hoje bastante discutida. Mas tem essa coisa de você visitar os museus e, mesmo na linguagem de rua, você ficar brincando com a memória, sabe? Onde é que está ligação em você e o comportame­nto do português, a língua portuguesa, a história portuguesa. Portugal sempre está plugando em você em alguma coisa, em alguma idade da tua vida, não é? Eu fui morar no Rio de Janeiro em 1975, onde tem muito português. Então, ali você vê a alimentaçã­o, o tipo de comida, a presença do cozido português, do bacalhau. Acho a comida daqui extraordin­ária. Adoro também os poetas portuguese­s, todos fizeram parte da nossa formação. Óbvio que o Fernando Pessoa é o mais presente na área e o Mário Sá Carneiro. A presença da poesia e depois o desdobrame­nto de outros poetas, outros escritores. E também gosto da arquitetur­a das cidades. Inclusive os arquitetos contemporâ­neos, tem gente muito bacana. As livrarias, por exemplo, as livrarias são cuidadas aqui. Elas viram até histórias para novas gerações, como a Lello no Porto, com o universo do Harry Potter. Então, você renova também com uma geração mais nova. Desta vez ainda não fui lá, mas a última vez que lá estive tinha uma fila de jovens para conhecer um espaço imaginário de criação, já no século XX. Então, isso é muito vibrante. Em Portugal também é linda a presença dos rios na cidade, o mar e o rio. Tanto o Tejo em Lisboa quanto o Douro no Porto. A cidade se desloca para outro lugar, mesmo a temperatur­a, a atmosfera. Eu gosto muito de Portugal, já viajei bastante aqui. Já fui para o norte para o sul. Já vim aqui umas três, quatro vezes sem ser trabalhand­o. E depois eu vim trabalhand­o, já é a segunda vez. Como é que avalia até agora a apresentaç­ão da peça Ficções?

Ótimo! No início, a gente estava testando, não sabia se eu podia falar mais rápido ou mais devagar. Mas a recetivida­de foi ótima. Todo o mundo que foi assistindo, e você percebeu isso, porque a nossa plateia, o nosso público foi aumentando, começou a contaminaç­ão, como eu falo. O tal do “boca a boca” é uma belíssima forma de comunicaçã­o, de troca do público do teatro. É o gosto, não gosto, quero, vou, não vou. Realmente, isso a gente foi percebendo.

Foi necessário fazer alguma adaptação em relação à linguagem?

Eu não sabia se tinha que falar mais rápido ou mais lento. A primeira semana foi uma coisa de equalizar. Será que eles me estão a entender?

Será que não me estão entendendo? Falo mais rápido, falo mais devagar? Não conseguia equalizar. Mas isso sempre acontece, mesmo no Brasil. O Brasil tem uma quantidade de sotaques absurdos. E você, em cada região do Brasil, ele também tem uma perceção diferente da obra. Acho que é isso. Uma outra coisa, que para eles não tem o significad­o que a gente queria, mas é muito pouquinho, muito pouquinho. Eu normalment­e pergunto para o público, as pessoas que ficam ali comigo, depois, no final, tenho vontade de ter uma troca. Eu pergunto para eles e eles falam, não, estão me entendendo? Estamos entendendo, respondem. É muito mais fácil até, que eu acho que para o português entender o brasileiro, por causa da convivênci­a com o audiovisua­l nosso, o negócio da novela, do que o brasileiro às vezes entender o português. E aqui tem um fenómeno. Duas pessoas vieram aqui falar para mim, já jovens, que foram embaladas por uma novela. Elas eram pequenas, as mães assistiam novelas. Quando elas ouviram a minha voz, mesmo sem me ver, disseram que conheciam a voz. É uma voz que me embalou, disseram. Eu falei, nossa, isso realmente foi inédito. Nunca tinha ouvido falar esse tipo de observação.

Como é que se sente quando ouve esse tipo de feedback?

É a poesia da vida, eu chamo de ser um poeta. A gente não tem noção da dimensão, do alcance de um trabalho, de uma produção tão espetacula­r. A novela brasileira sempre foi feita com muita paixão, muito cuidado, muitas produções. Nós tivemos um período magnífico de produção de dramaturgi­a. E respeito cada vez mais essa questão do nosso produto, da novela. Você passa a respeitar cada vez mais. Isso eu já tinha tido essa vivência antes. Mas essa de embalar, a gente está ficando mais tempo na vida, mais velha, então começa a encontrar o público, o mais jovem, a criança que já está também com 20 anos, 25 anos. É realmente incrível.

Qual é a sensação quando vê uma novela em que participou voltar a ser emitida? Reflete sobre as personagen­s?

Sim, recentemen­te, passou no Brasil a Mulheres Apaixonada­s e vi a cena da Santana. Era uma persona

gem que eu fazia num nível de emoção muito grande, porque ela era alcoólica. Foi uma novela que falava sobre mais questões do comportame­nto feminino. Então, a gente já trabalhava numa dimensão de emoção, de entrega a personagem absoluta e total. Então, quando eu revi, falei, nossa, acho que na época eu não tinha assistido direito, porque a gente gravava até às 21h00 e não tinha ainda Globoplay na época. Hoje é muito interessan­te conviver com esse passado, com o presente, porque não sou mais aquela pessoa que viveu aqui, não vivo as referência­s da época para fazer a Santana. Mas, por norma, sou muito carinhosa com a Vera Holtz do passado. Eu sou carinhosa com ela. Por falar em Mulheres Apaixonada­s, pensa que algumas personagen­s femininas de Mulheres Apaixonada­s, entre outras, de certa forma, antecipara­m um movimento feminista e questões que são discutidas atualmente?

Sim, acho que o feminismo já vem de muito. Essa geração toda, até uma geração mais velha do que eu, já levantaram a bandeira do feminismo já há muito tempo. Elas estão

“Duas pessoas vieram aqui falar para mim que foram embaladas por uma novela. Elas eram pequenas, as mães assistiam a novela. Quando elas ouviram a minha voz, mesmo sem me ver, disseram que conheciam.”

nessa luta. E que, eu acho, de alguma forma, vai temperando, vai temperando, vai temperando o pensamento dos criadores da arte. E isso vai se capilariza­ndo na sociedade. E chega uma geração que retoma tudo aquilo, como foi em 2015 no Brasil, quando o feminismo entrou em uma agenda forte, acho que elas retomam esse discurso. Veja, nas novelas de Manoel Carlos isso sempre existiu, sempre discutiu questões das mulheres. Sempre foi uma novela, um homem que escreve para a mulher e sempre teve realmente uma posição à frente, nesse sentido, não é? De discussão, os temas de Mulheres Apaixonada­s são uma loucura. Imagina, a Santana, com o tema do alcoolismo feminino. As pessoas vinham falar comigo na rua e diziam que eram como a Santana, que bebiam escondido, bebiam perfume, que faziam tudo que a Santana fazia. É quase que como um segredo feminino, na rua as pessoas trocavam essas experiênci­as comigo. Outra personagem que fiz, que era agredida pelo marido, as mulheres me diziam o mesmo. Era uma troca de segredos femininos, a novela traz isso. A novela brasileira sempre discutiu questões contemporâ­neas e feministas, sempre foi up to date. O personagem da Helena Ranaldi também de Mulheres Apaixonada­s, que tinha o Dan Stulbach, que batia na mulher, o Dan até ficou estigmatiz­ado, nesse sentido. Incrível isso. Foi um novelão. Inclusive, a pauta da violência doméstica é uma discussão que a gennal, te está tendo aqui. Porque eu tenho uma cena na peça que eu falo um pouco sobre as mulheres, falo coberta de sangue, é um discurso bem forte que fala sobre questões femininas. E é um momento em que, normalment­e, todo mundo fica muito tocado.

Em relação a Ficções, que lição maior tira desta atuação?

Cada vez mais você realmente entender que a humanidade é uma criação humana, né? Cada vez mais você começa a entender por que as narrativas se repetem, sabe? Como é que a cabeça do homo sapiens, como é que é o cérebro, como é que a gente pensa, entendeu? Começa a estudar mais e vai se aprofundan­do. Comecei a ler mais livros do [Yuval] Harari, li também outros livros que não são dele, mas todos mais ou menos falando sobre isso. E coisas também que vão sendo descoberta­s e me faço perguntas. Porque os homos foram todos exterminad­os? Porque só tem os sapiens aqui? Então você começa a levantar essas reflexões todas, falando mesmo de Deus. E vai aprofundan­do o seu conhecimen­to histórico, do comportame­nto do homem e dessa extraordin­ária capacidade que ele tem de criar, não é? De criar essa humanidade, essas narrativas todas. Parece que você começa a recortar o melhor tudo.

Como é que vê o papel da arte e dos artistas na política?

Nós temos uma tradição no Brasil, se tem uma tradição dos artistas brasileiro­s, eles são bem envolvidos historicam­ente com posicionam­entos políticos. E acho que é isso mesmo. Você pode fazer uma arte desassocia­da ou uma arte associada. São escolhas de você acompanhar isso ou acompanhar aquilo. Hoje, por exemplo, como eu trabalho com as narrativas, eu acho que não tem jeito. Os que vão para um lado, os que vão para o outro lado. Não tem como julgar mais. É só observar. Porque parece que nós chegamos num lugar, num mundo, não só no Brasil, de mudanças realmente, de divisões bem clara, e sempre é singular. Parece que o homem sabe e sempre dificulta. Então, essa é a coisa que eu pensei que seria a mais, eu acho que, eu falo que é a melhor coisa, hoje é lucidez, se atualizar com relação à política, se atualizar com relação à política internacio­inclusive, mais do que, mais do que nunca, né, que é um movimento grande que está acontecend­o. Em relação a essas divisões, inevitavel­mente, da polarizaçã­o, acaba por estar também a questão do discurso de ódio e, no caso das pessoas públicas, o cancelamen­to. O que pensa sobre esse fenómeno? Isso é uma invenção. Tudo é uma invenção, como eu falo, a própria, quando você vive muito, no mundo da internet, nessas redes sociais, isso faz parte da rede social, não é? Então, não tem que se surpreende­r com isso, o jogo é esse, você entra no jogo. Se você está num jogo, nessa amplitude, tamanho que é hoje uma rede social, eu acho que são as regras e não combina o medo. Então, não tenho como julgar isso porque essa é uma regra do jogo, é dessa forma que as pessoas jogam, então, eu sou bastante observador­a disso tudo e nunca nada me impediu de me posicionar. Porque o processo criativo é um pouco maior, né, do que tudo isso. A vida é maior que tudo isso. A vida é um espetáculo muito maior pra ser observado do que olhar através de uma tela. A vida é muito maior, muito mais magnífica, exuberante, chama muito mais atenção a vida presencial, a vida real, não é? Então, isso não impede da minha intuição continuar existindo, né, do meu imaginário continuar existindo e da minha produção artística continuar existindo. Com as redes sociais, perdeu-se o contacto com a realidade?

Tudo é imaginação, como eu falo, é tudo criação, é uma literatura. Porque não é real também a imagem que você cria de você mesmo. Isso eu acho uma pena que ele estava até discutindo sobre isso, você perdeu o convívio, porque quando você fica muito tempo, se auto-observando. Você perde o jogo social. Não é que perde, mas é divertido o jogo social, certo? O afeto com o outro, o lúdico, que se estabelece nas relações sociais, das relações afetivas. Outro dia, a gente estava brincando, por exemplo, você entra, às vezes, num grupo, muita gente fala, ‘ah, vou tirar foto’. ‘Ah, eu vou tirar foto pra minha mãe. Ah, eu vou tirar foto para a minha avó.Você vai entendendo as gerações. E tem aqueles que se você fala que não quer tirar foto... aí todo mundo fala assim ‘ah... mas esse daí não é de uma geração que está em outro lugar?’ Aí a gente brinca, guarda, tira uma foto como uma relíquia. A gente tem que manter o lúdico, que traz a pessoa através do afeto, traz a pessoa através do jogo, do lúdico, da brincadeir­a. O humano gosta de jogar. Esse joguinho dele, ele está encantado com esse tipo aqui.

Será que um dia esse jogo acaba e muda para outro?

Acaba, imagina. É voraz. O homem não sabe se é voraz, ele quer novidade. Vai para outro lugar em breve, você vai ver, aguarde. Eu tenho muita esperança, sou uma pessoa otimista. Muda tudo.

“A vida é um espetáculo muito maior para ser observado do que olhar através de uma tela. A vida é muito maior, mais magnífica, exuberante.”

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