Região de Lisboa permite limitar atestado de morada a imigrantes
Algumas juntas de freguesia baseiam-se em documento de 2014 que nomeia o Cartão de Cidadão como o documento válido para obter o atestado de morada.
Um parecer jurídico, de 2014, legitima a decisão das juntas de freguesias em pedir o título de residência para emitirem o Atestado de Residência a imigrantes, como acontece em Arroios (Lisboa), facto revelado pelo DN esta semana. O documento é da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR-LVT), assinado pela jurista Ana Azinheiro, e frisa ser o Cartão de Cidadão o “meio adequado para demonstrar a residência do cidadão”.
O parecer é utilizado, por exemplo, na Junta de Freguesia de Laranjeiro e Feijó, em Almada, onde se encontra afixado nas instalações. O DN teve acesso a um documento da junta, com data de 2023, em que justifica o facto de não ter permitido a emissão do atestado de morada: “Esta Junta de Freguesia só emite atestados a cidadãos estrangeiros que comprovem ser residentes legais, através da apresentação de Título de Residência com validade legal ou superior a um ano, cumprindo assim o estabelecido no parecer.”
Já passam 10 anos da emissão do parecer pela CCDR, mas continua a dar base legal à prática, que impede a regularização de imigrantes e o acesso a diversos direitos. Em 2014, data do documento, o país tinha 388 731 estrangeiros com Título de Residência, de acordo com dados do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). O número hoje é de pelo menos o dobro de imigrantes com Autorização de Residência (AR) no país.
O DN questionou a Comissão sobre a validade do parecer, uma vez que o cenário do país hoje é diferente do de há uma década. Na altura, ainda não existiam diversas alterações à Lei dos Estrangeiros, a qual flexibilizou a regularização dos imigrantes que já estavam em território português. Ao DN, a CCDR respondeu apenas que “não se alcança as implicações do parecer jurídico”.
A situação, revelada inicialmente pelo DN, foi alvo de queixa na Provedoria de Justiça. Segundo este órgão, estão em análise quatro denúncias relativas ao tema. Duas são de cidadãos estrangeiros, uma apresentada por um partido político e outra por uma associação. Ainda não há deliberações sobre a matéria.
“Pescadinha de rabo na boca”
Na maior parte dos casos, o atestado de morada é utilizado para obter o Número de Identificação Fiscal (NIF), uma etapa necessária para abertura de conta bancária, inscrição na Segurança Social, efetivação de contrato de trabalho ou abertura de atividade para emissão de recibos verdes. É também essencial para o ingresso na Manifestação de Interesse (MI) ou mesmo para a entrevista presencial nos balcões da Agência para a Integração Migrações e Asilo (AIMA), a última etapa para conseguir a Autorização de Residência.
Na prática, é exigido o Título de Residência, quando, na verdade, o Atestado de Residência é justamente um documento necessário para obter o próprio Título de Residência. É uma “pescadinha de rabo na boca”, como diz o ditado.
Gustavo Carneiro, advogado especialista em imigração, sublinha que a medida “não se justifica, pois muitos arrendam casas, compram casas, e não pedem o Título de Residência para isso, não faz sentido as juntas exigirem tal documento”.
Outro problema que a situação revela é o desencontro de informações no setor público. Cada junta de freguesia faz as suas próprias regras para emissão do atestado de morada, o que causa constrangimentos aos cidadãos. Em Benfica, por exemplo, não é preciso o Título de Residência para o atestado. Basta que duas testemunhas recenseadas no bairro assinem um requerimento, apresentado junto com o passaporte. Na Amadora, só a assinatura das testemunhas não basta: é necessária a presença pessoalmente na junta de freguesia. Há ainda relatos ouvidos pelo DN de que basta fazer a solicitação em próprio punho que o certificado é aprovado.
Segundo o advogado, o facto de cada junta de freguesia criar as próprias regras mostra que se “ignora a existência de um dispositivo legal que regula esse procedimento”. O documento em questão é o Decreto-Lei n.º 135/1999, de 22 de abril. No artigo 34 lê-se: “A prova desses factos seja feita por testemunho oral ou escrito de dois cidadãos eleitores recenseados na freguesia ou ainda por outro meio legalmente admissível.” Segundo Gustavo Carneiro, “para o imigrante, que não conhece bem o funcionamento das leis aqui, esse desencontro de informações causa mais apreensão e incerteza”.
Há ainda o mesmo problema no que diz respeito aos órgãos para onde o documento deve ser enviado. Por exemplo, em algumas delegações do antigo SEF é permitido comprovar a residência com uma conta de luz em nome do cidadão, enquanto em outras é preciso mesmo o atestado emitido pela junta de freguesia. No caso do processo inicial da regularização no país, como o pedido do NIF, é impossível ter esse tipo de comprovativo, já que a contratação do serviço exige já ter um NIF. O mesmo para um contrato de arrendamento de imóvel, uma alternativa que estaria colocada se o imigrante já estivesse inscrito nas Finanças. Mais uma vez, é “a pescadinha de rabo na boca”.
Na prática, as juntas exigem o Título de Residência, quando, na verdade, o atestado de morada é justamente um documento exigido para obter o próprio Título de Residência.