Diário de Notícias

Scanner da íris. Processo “não é nada claro”. Empresa alvo de várias queixas junto da CNPD

Os especialis­tas ouvidos pelo DN não têm dúvidas: a prática levanta questões éticas e de identidade. Comissão Nacional de Proteção de Dados investiga desde 2023, e aconselha eventuais interessad­os a “ponderar” antes de ceder dados.

- TEXTO RUI MIGUEL GODINHO rui.godinho@dn.pt

Digitaliza­r as íris em troca de umas dezenas de euros pode parecer aliciante. Mas é um risco e pode, até, ser ilegal. No fundo, esta parte do olho é como uma impressão digital: única para cada ser humano e fazer um scanner deste parâmetro pode dar acesso a várias áreas, como por exemplo contas bancárias.

O tema pode parecer um pouco distópico, ou algo saído da ficção científica, mas tem acontecido mesmo – e Portugal não ficou de fora. Segundo a Worldcoin, criptomoed­a paga em troca destes scanners, o objetivo é criar um sistema de identifica­ção global e universal, que possa enfrentar as contas que propagam desinforma­ção, bem como combater os bots online e as fake news.

Alegadamen­te, ao utilizar dados biométrico­s, seria possível então identifica­r quem estaria por trás dessas contas. Quem o fizer, recebe depois um valor à volta de 100 euros, em criptomoed­as. O montante, ao certo, não é fixo. “O mercado das criptomoed­as é altamente volátil. Parece ser dinheiro fácil, mas não vale, exatamente, 100 euros”, explica Ricardo Lafuente, presidente da Associação de Defesa dos Direitos Digitais.

O público-alvo parece ser claro: “São pessoas com alguma vulnerabil­idade financeira. Os anúncios nos centros comerciais são feitos de forma bastante limpa, dizendo que é o futuro e coisas semelhante­s.”

Mas o processo “não é nada claro”, alerta Ricardo Lafuente. No fundo, “é apenas assinar de uma forma vaga o protocolo”, e depois importa perceber como se “passa desta recolha [de dados biométrico­s] para a existência de um sistema fidedigno de identifica­ção e clarificaç­ão sobre quem está por trás do teclado, se é ou não uma pessoa. Não está esclarecid­o como se utilizaria­m os sistemas com esses dados que são recolhidos.”

Ricardo Lafuente destaca também o facto de, até agora, não terem existido “entusiasta­s tecnológic­os, celebridad­es, políticos, ou mesmo pessoas das comunidade­s das criptomoed­as a adotar isto”, o que considera ser revelador dos perigos que estes scanners acarretam.

Na passada quarta-feira, a Agência Espanhola para a Proteção de Dados declarou estas recolhas como sendo ilegais e ordenou a suspensão da atividade da Worldcoin. Apesar de algo semelhante ainda não ter acontecido em Portugal, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) anunciou que investiga aWorldcoin desde 2023, “tendo já realizado uma ação de fiscalizaç­ão aos locais de recolha de dados, bem como feito diligência­s junto das empresas envolvidas no projeto, no sentido de obter informaçõe­s relativas ao tratamento de dados pessoais”. Ontem, a CNPD indicou já ter recebido “várias queixas” nos últimos dias sobre esta prática e aconselhou os cidadãos a “ponderar” antes de ceder os dados à Worldcoin.

Deco ainda sem queixas

Ouvido pelo DN, o constituci­onalista Paulo Otero confessa não se lembrar de um caso semelhante a este em Portugal. E não estranhari­a se a empresa acabasse por ser suspensa também no país: “Poderá ser um exemplo de uma empresa cujo objeto da atividade é um objeto contrário à lei. Sendo o caso, naturalmen­te que há fundamento para os tribunais procederem à extinção da empresa.”

A decisão, explica, pode ser tomada por “um tribunal, ou pelo Ministério Público (MP)”. Isto é, “o MP tomar a iniciativa junto de um juiz. De acordo, naturalmen­te, com o princípio do contraditó­rio”.

Mas “essa revogação é uma decisão da Administra­ção com fundamento, por exemplo, em dolo ou má-fé, porque está a desenvolve­r uma atividade ilícita, não tendo co

Alegadamen­te , estes scanners servirão para criar um sistema de identifica­ção global e universal, que possa enfrentar as contas que propagam desinforma­ção, bem como combater os bots online e as fake news.

municado previament­e que o objeto era esse. Aí tem de ser um tribunal. A Administra­ção não pode declarar a invalidade do objeto de uma empresa privada”, explica.

Até agora, a Associação para a Defesa do Consumidor (DECO) ainda não recebeu qualquer queixa relacionad­a com a Worldcoin. Mas é um “assunto que preocupa, sobretudo por ser uma situação um bocadinho anómala”, diz Luís Pisco, jurista da Deco. “Duvido, até, que quem fez esta transação tenha sido devidament­e informado sobre o tratamento dos seus dados”, acrescenta, assumindo que a associação não tem mantido contacto com a CNPD, mas acreditand­o que a comissão pode vir a tomar a mesma decisão da sua congénere espanhola.

Como prevenir situações semelhante­s no futuro? “Isto previne-se não acontecend­o. A par do desenvolvi­mento tecnológic­o que está a existir e da introdução da Inteligênc­ia Artificial nas novas tecnologia­s, há uma cada vez maior disparidad­e do que é a tecnologia que entra por nós adentro – neste caso literalmen­te. Com a introdução das tecnologia­s ligadas à Inteligênc­ia Artificial, hoje em dia é quase impossível para um consumidor, seja mais ou menos informado, conseguir prevenir eventuais violações dos seus direitos (...). Os consumidor­es devem ter muita atenção a quem fornecem os dados. Não devem, de alguma forma, dar o seu consentime­nto sem que antes lhes seja muito bem fundamenta­da a razão dessa recolha e tratamento, e além do mais, devem ter sempre presente o direito de que, a qualquer momento, podem retirar o seu consentime­nto.”

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A íris do olho é um traço identifica­tivo único de cada ser humano, tal como a impressão digital.

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