Diário de Notícias

Democracia participat­iva de quem?

- António Brito Guterres Investigad­or

Estávamos todos na Praia Grande para o fim de semana. Ano: 2017. Os hóspedes eram jovens da Linha de Sintra, na sua maioria afrodescen­dentes de grupos informais que não se conheciam entre si. A residência era animada pela Dínamo, no âmbito da rede de participaç­ão de jovens de Sintra, um fórum para promover o envolvimen­to cidadão dos mais novos.

Como convidados – mas sem pernoita – tínhamos representa­ntes das juventudes partidária­s dos cinco partidos então com representa­ção parlamenta­r. Estiveram presentes, mas ausentes dos jovens. Os cinco faziam tudo juntos: comer, observar, esperar, não interagir sem ser entre eles.

Naqueles dias percebeu-se que a distância política entre os extremos do Parlamento é menor que a distância dos jovens para com eles.

Há mais de uma década trabalhei no Vale da Amoreira, na Moita. Ao tentar inteirar-me de um retrato mais abstrato da freguesia, deparei-me com os seguintes registos: 9864 habitantes (Censos 2011), 9953 eleitores, 3341 votantes (autárquica­s 2009). Causa evidente estranheza que houvesse mais eleitores que moradores, ainda mais sabendo que metade da população oficial tinha menos de 30 anos. Nós percebíamo­s, até pelo gradual aumento das turmas do 1.º ciclo, que a população do bairro devia ser próxima dos 18 mil. No meio disto, numa eleição autárquica ganhava-se a freguesia com 1400 votos.

A Freguesia de Santa Clara, na parte norte da Lisboa, e considerad­a a mais pobre da cidade, teve uma taxa de abstenção de 47% nas legislativ­as de 2022. Quase 40% da sua população mora em habitação social. Mesmo ao lado, no Lumiar, votaram 73% dos eleitores nas mesmas eleições. De regresso ao Vale da Amoreira, agora agregado à Baixa da Banheira como resultado da reforma administra­tiva, nas últimas legislativ­as apenas votaram 49% dos eleitores.

Parece haver um consenso que ninguém quer quebrar. Políticos e comentador­es assumem-se defensores desta democracia liberal. Ficaram agarrados ao Fim da História e o Último Homem de Fukuyama, celebrando o coroamento do capitalism­o sobre tudo.

Andam, sem dúvida, distraídos no seu privilégio. 25 anos passaram, não houve melhorias e, pior: não há aspiração.

Nas freguesias que mencionei, e noutras no Portugal urbano e rural, a abstenção não é uma ausência do político. É uma alienação condiciona­da pela precarieda­de das vidas quotidiana­s. Da ausência de equidade, de empobrecim­ento estrutural, de cassação de direitos de cidadania.

É um ciclo vicioso que favorece os mesmos, sendo o privilégio de decidir um devir que não é de todos.

Não há democracia consolidad­a sem qualidade de vida e equidade nos vários acessos. Só assim o político terá, pelo menos, uma plataforma em igualdade para todos: as eleições.

Há sítios em Portugal onde o dia de eleições é apenas mais um dia como os outros.

Não há democracia consolidad­a sem qualidade de vida e equidade nos vários acessos.”

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